domingo, 24 de julho de 2016

RESENHA: Um Reflexo na Escuridão

“Imagine ser senciente, mas sem estar vivo. Enxergar e até mesmo saber, mas sem estar vivo. Só olhando para fora. Reconhecendo as coisas, mas sem estar vivo. Uma pessoa pode morrer e continuar assim. Às vezes, aquilo que está te olhando através dos olhos de uma pessoa pode ter morrido lá atrás, na infância. O que está morto ali dentro ainda olha para fora. Não é apenas o corpo olhando para você sem nada dentro; ainda tem alguma coisa ali, mas essa coisa morreu e fica só olhando; não consegue parar de olhar.” (DICK, 2016, p. 281)

Quando comecei a me interessar pela obra de Philip K. Dick, “Um Reflexo na Escuridão” foi o primeiro livro que me chamou a atenção. Porém, na ocasião, ele ainda não havia sido lançado pela Editora Aleph e já não se encontrava disponível no catálogo da Editora Rocco. Assim, meu contato com a obra do autor teve início por outros livros, mas minha primeira impressão estava certa: “Um Reflexo na Escuridão” era o que mais iria me agradar.

Um policial que trabalha como agente disfarçado em meio a usuários de drogas. Esse é Bob Arctor (ou Fred, como é conhecido por seus colegas policiais) que, para cumprir sua missão, não teve escolha a não ser se tornar um usuário da misteriosa e altamente viciante Substância D. Cada vez mais dependente da droga, ele acaba experimentando um dos seus efeitos colaterais: o rompimento da conexão entre os dois hemisférios do cérebro. A partir desse momento, ambas personalidades (tanto Bob quando Fred) estão presentes, mas ele já não sabe mais quem é.

Dos três livros que li de Dick, “Um Reflexo na Escuridão” é o que menos apresenta um cenário típico de ficção científica e talvez justamente por isso seja o que tive mais facilidade de me conectar. Isso porque as outras tramas buscavam responder perguntas do tipo “e se?”, de forma que o contexto se sobressaía à história dos personagens, levando o leitor mais a refletir ao final do que a se envolver durante a leitura. Aqui o que acontece é o oposto, tanto que o autor já mostra na abertura do livro que estamos prestes a embarcar em uma história de pessoas que já não tem controle algum sobre suas próprias mentes, permitindo ao leitor testemunhar a angústia de um personagem que está convencido de que está infestado de piolhos. Assim, se os outros livros se prejudicam por criar um distanciamento entre o leitor e os personagens, esse leva vantagem por nos colocar dentro de suas consciências.

E isso é algo que Dick pode fazer com conhecimento de causa já que seu próprio passado de usuário de drogas influenciou a criação da trama. A “substância D” pode ter sido inventada pelo autor, mas muito do que vemos no livro foram coisas que Dick vivenciou por conta própria ou testemunhou através de conhecidos.

Dick mostra sua genialidade até em pequenas coisas. Uma delas é o codinome de Fred, “Bob Arctor”, remetendo à palavra “ator” em inglês, já que é justamente isso que o personagem faz: atua. Porém, a atuação que devia se limitar apenas aos usuários da droga, se alastra também para a vida dele enquanto policial. Devido a um “traje borrador” que mascara a aparência de quem o veste através de imagens armazenadas em um banco de dados, os colegas policiais não sabem a aparência que ele tem e, eventualmente, ele mesmo deixa de saber. Aos poucos as duas identidades se confundem e ele já não sabe mais se o policial finge ser o usuário ou se é o usuário que finge ser o policial, chegando um ponto em que, ao assistir as fitas de vigilância, Fred enxerga Bob Arctor como uma terceira pessoa, sem saber que se trata dele próprio. Com isso, não é apenas a perda da identidade que Dick aborda, mas também o distanciamento da realidade que vive o viciado em drogas, fazendo de “Um Reflexo na Escuridão” um livro angustiante e sombrio.

Ao adotar a narrativa em terceira pessoa, o autor conseguiu explorar igualmente as histórias de vários personagens, levando o leitor para dentro de suas mentes, mas ainda preservando o olhar de testemunha. Uma escolha acertada já que os próprios personagens não sabem direito o que se passa com eles e a intenção do autor parece ser justamente mostrar ao vazio a que os usuários se reduzem. Assim, as inúmeras cenas que giram em torno de conversas supérfluas e até mesmo sem sentido não são dispensáveis como seriam em outros livros e sim fundamentais.

Eu não diria que Bob/Fred seja um personagem que desperta empatia, mas nos últimos capítulos é impossível não se sentir tocado, e até mesmo triste, ao vermos o seu destino. Aliás, este é outro mérito do autor: não se acovardar no desfecho da história. Foi graças a isso que encerrei a leitura desejando fazê-la novamente em outro momento.

Não bastasse o impacto da própria história, o livro encerra com uma nota em que o autor revela ter se inspirado em conhecidos para alguns dos coadjuvantes da trama e fala também sobre a mentalidade da época a respeito do uso drogas. Como um ex-usuário, Dick reconhece: “É uma escolha”. Seus comentários sobre as pessoas que perdeu, sobre as consequências que algumas (inclusive ele mesmo) tiveram que enfrentar são breves mas emocionantes.

Além deste, a edição conta ainda com outros materiais extras, como uma entrevista do autor, um artigo que analisa a obra e uma nota referente a escolha do título da edição brasileira. Impossível não elogiar a atenção da editora Aleph com seu leitor ao, além de fornecer materiais que complementam a leitura, se preocupar em não deixar que a intenção do autor se perdesse para o leitor brasileiro.

“Um Reflexo na Escuridão” pode ser visto como um livro de ficção científica, como um suspense ou até mesmo como um drama. Pode ser simplesmente uma trama sobre o mundo das drogas e suas consequências ou pode ser uma discussão interessante sobre a identidade e perda dela, sobre ver seu próprio reflexo e não se reconhecer nele. Sob qualquer um desses pontos de vista, funciona e impacta.

Em 2006, o livro foi adaptado para o cinema sob a direção de Richard Linklater e com Keanu Reeves no papel principal. No Brasil, o filme recebeu o título de "O Homem Duplo". 

Título: Um Reflexo na Escuridão (exemplar cedido pela editora)
Autor: Philip K. Dick
N° de páginas: 349
Editora: Aleph

19 comentários:

Unknown disse...

Oi, Mari, como vai?
Uau! Não sabia que esse livro poderia ser tão bom! Só de ver as capas (que eu achava lindas e conceituais) não me aproximava da história, então nunca soube exatamente sobre o que se tratava.
Gostei muito da sua resenha. Parabéns. Um livro que não me fazia sentir vontade de ler a sinopse, agora é um livro que estou a fim de ler ;)
Abraços!

-Ricardo, Lapso de Leitura

Beatriz Nathaly disse...

Olá! Confesso que não conhecia o livro, mas achei a sua capa interessante. Infelizmente não é o tipo de leitura que me agrada :/

Beijinhos,

Beatriz - Blog Escrevendo Mundos

Leandro de Lira disse...

Oi, Mari!
Este filme parece ser bom mesmo. Eu acredito que não gostarei muito dos outros livros dele (inclusive, você até comentou, nesta resenha, como os demais livros dele se desenvolvem). Parece ser uma leitura deveras impactante e também interessante, sem dúvida.
Espero poder ler em breve e gostar tanto quanto você.
Amei a resenha. :)
Abraço!

"Palavras ao Vento..."
www.leandro-de-lira.blogspot.com

Sil disse...

Olá, Mari.
Confesso que foi dificil ler os primeiros parágrafos porque essa capa estava dando um nó nas minhas vistas hehe. Eu já tentei ler um livro do autor e achei bem complicado para o meu gosto, li na época que frequentava a biblioteca. Então não sei se leria esse, mesmo achando interessante esse enredo. Acho que nunca li nada parecido. Quem sabe eu leia e tire essa má impressão do autor.

Blog Prefácio

Gabriela CZ disse...

Confesso que não sabia sobre o que se tratava esse livro mas agora fiquei bastante interessada, Mari. A premissa é incrível e seus comentários não poderiam ser mais convincentes. Com uma trama que aborda tantos aspectos certamente preciso ler. Ótima resenha.

Beijos!

Ariane Gisele Reis disse...

Oie Mari =)

Confesso que essa capa deu uma ilusão de ótica brava aqui rs ... tanto que nem consegui ler direito os primeiros parágrafos. Não conhecia o livro e de cabeça agora não lembro se assisti a adaptação dele para os cinemas. Mas gostei bastante da premissa da história.

Beijos;***

Ane Reis.
mydearlibrary | Livros, divagações e outras histórias...
@mydearlibrary

Cristiane Dornelas disse...

Esse não conhecia e pela sinopse parece ser bem interessante. E acho que iria me adaptar melhor com esse do que outros do autor, se for mais ligado aos personagens assim do que a história/perguntas e etc. Parece fazer refletir e tem toda aquela inteligencia por trás de nomes dos personagens e o texto em si. Gostei da dica. E vou procurar esse filme, quem sabe ver.

Luiza Helena Vieira disse...

Oi, Mari!
Mulher, esse livro me ganhou quando você comenta que os dois hemisférios do cara se separam. Gente, que tudo! Já quero logo conferir.
Não sabia que tem o filme, mas acho que vou conferir primeiro o livro. Só essa capa que me deu um pouco de dor de cabeça.
Beijos
Balaio de Babados

Daniela disse...

oooi, tudo bem? (:
A história parece ser interessante, mas confesso que olha para esta capa me deu uma leve dor de cabeça, haha. Mas ao ler o que escreveu, acredito que esta capa encaixe PERFEITAMENTE na história.

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Unknown disse...

Vi esse livro já pela net e desde a primeira vez que eu vi eu fiquei muito curiosa para ler.
Minhas expectativas estão bem altas e eu quero muito saber como será o desenrolar da história.

Maria Fernanda Pinheiro disse...

Gosto de ficção científica e por isso me interesso pela obra, gostei do autor retratar um personagem viciado em drogas e mostrar as consequências do ato, acho que o autor conseguiu narrar bem os fatos em 3° pessoa, quero ler, não tinha me interessado no livro por causa da capa, mas a história é o que importa

Michele Lima disse...

Oi Mari!

O livro parece ser muito bom! Não conheço o autor, mas fiquei curiosa pra conhecer a narrativa! E a capa é sensacional, não consigo parar de olhar rsrsrsrs

Bjs, Mi

O que tem na nossa estante

Caverna Literária disse...

A escolha da capa foi muito boa, condizente com a história apresentada. Personagens que não atraem nossa empatia tornam a leitura um pouco desafiante, e é interessante que ainda assim no final nos sentimos tocados pela situação dele. Ótima resenha, gostei bastante da premissa do livro!

xx Carol
http://caverna-literaria.blogspot.com.br/

DESBRAVADORES DE LIVROS disse...

Olá, Mari.
Dick é um autor que eu adoro e seu cenário de ficção científica não me incomoda. Contudo, tenho esse livros em mãos e estou ansioso para conferir essa abordagem menos científica do autor, podemos dizer assim.
Além disso, ver um agente infiltrado no meio de um local "infestado" de drogas e depois se tornando usuário parece bem interessante. Não obstante, o fato dos personagens não terem controle completo da mente deixa tudo ainda mais atrativo.
Sem dúvidas, leria a obra.

Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de julho. Serão quatro livros e dois vencedores!

Sofia Noronha disse...

Oi Mari, meu tio assistiu o filme da adaptação no cinema e não gostou muito. Eu pensei que falava de uma coisa completamente diferente, mas lendo sua resenha, achei que a história parece ser bem interessante; fiquei bastante curiosa pelo livro/filme, vou tentar conehcer a história em breve.
Beijos

Unknown disse...

Oi :)
Confesso que não gosto muito de livros de suspense mas esse me chamou a atenção de alguma forma. A estória parece ser muito interessante e que nos surpreende do começo ao fim. A edição contribuiu também para eu querer lê-lo, está maravilhosa.
Beijos.

Ana I. J. Mercury disse...

Nossa bem diferente do que to lendo!!!
Gostei, fiquei curiosa pra saber mais,
Anotado aqui, vou procurar no sebo kkk
bjs

Carolina Garcia disse...

Oi, Mari!

Ainda não tive oportunidade de ler esse livro e, para ser bem sincera, ele não tinha me chamado muito a atenção.
Apesar de ser muito elogiado, não entrei ainda na vibe para ler esse título.

Bjs

http://livrosontemhojeesempre.blogspot.com.br

Unknown disse...

Mari, que arraso de resenha. Volta e meia eu vejo algum post sobre livros desse autor e sempre vem aquela sensação de que eu deveria ler um livro dele, mas esse foi o texto que mais me chamou a atenção. Com toda certeza vai pra lista e de fato ouvirei meu coraçãozinho dessa vez hahaha. Gostei muito!!!


(Carol)

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