“— Na maior parte do tempo consigo bloquear esse tipo de pensamento. Fico irritada e tal, mas o tanque emocional aguenta até certo ponto, sabe? Às vezes não tenho vontade de conversar. Porque quando converso sempre sinto como se estivesse me defendendo, e já estou cansada de pedir permissão para existir. [...]. Tudo fica ainda pior porque gosto de mim mesma e do meu corpo, então quando alguém vem me falar merda, sinto como se tivesse que recomeçar do zero. Você não faz ideia do que é ter que lidar com pessoas que vêm me pergunta o que eu sou. Tipo, qual é a resposta pra uma pergunta dessas?” (SPANGLER, 2017, p. 275).
***
Dylan é um garoto de quinze anos com quase dois metros de altura e com muitos pelos no corpo, o que lhe rendeu o apelido de Fera. Ele conhece Jamie, uma garota bonita e inteligente, em uma sessão de terapia e aos poucos surge uma conexão entre eles. Mas quando Dylan descobre que Jamie é transgênera, terá que decidir se irá esconder seus sentimentos ou lutar contra seu próprio preconceito.
A primeira observação que preciso fazer é que apesar da estória ter sido claramente inspirada em A Bela e A Fera, garanto que Fera vai muito além de sua fonte de inspiração, visto que a obra de Brie Spangler não se limitou a dar um toque moderno ao clássico filme da Disney. A verdade é que as estórias podem até partir de um mesmo ponto, mas a partir daí tomam caminhos diferentes.
A narrativa em primeira pessoa mostra o ponto de vista de Dylan, de modo que o leitor tem um contato muito próximo com o protagonista, entendendo exatamente quais são seus pensamentos e emoções, bem como o que motiva suas atitudes. É preciso registrar que o texto de Spangler é extremamente fluído e envolvente, sendo que no primeiro dia li mais de cem páginas sem nem perceber.
Dylan e Jamie são personagens multifacetados e bem desenvolvidos, sendo que a evolução deles ao longo da estória é palpável. Ambos são julgados e sofrem preconceito apenas por serem quem são e deste contexto Spangler propõe diversas reflexões. Outro acerto da autora foi mostrar a reação de outros personagens — como a mãe de Dylan e seu melhor amigo — diante do envolvimento de Dylan e Jamie. E assim como no mundo real, Spangler não criou mocinhos e vilões, mas pessoas com qualidades e defeitos.
Ao contrário da maioria dos livros com personagens LGBT, Fera tem o diferencial de que Jamie já se aceita como é, estando de bem consigo mesma, sendo que sua luta agora é com o mundo exterior, que muitas vezes não a entende, tampouco aceita. Assim, o enfoque do livro está no processo de aceitação de Dylan, que não sabe como reagir a situação, sentindo-se confuso e perdido.
Evidentemente, o livro traz algumas discussões a respeito de orientação sexual e, principalmente, identidade de gênero. Este foi o primeiro livro que li que apresentava um personagem transgênero e achei que a autora conseguiu expor com maestria as dificuldades com as quais tais pessoas lutam. Creio que para quem é cisgênero — ou seja, aqueles que se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer — é muito difícil imaginar o quanto as pessoas trans sofrem e justamente por isso é tão fácil julgar e ser preconceituoso.
Fera conta com bons personagens, narrativa envolvente, uma estória original e, acima de tudo, com profundas reflexões sobre os mais diversos temas. Além de uma excelente leitura, creio que Fera é o tipo de livro necessário para abrir a mente das pessoas e tornar o mundo mais tolerante.
Autora: Brie Spangler
N.º de páginas: 384
Editora: Seguinte
Exemplar cedido pela editora
Compre: Amazon
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12 comentários:
Alê!
Achei bem interessante essa releitura do conto de fadas e muito original, trazendo uma proposta diferenciada e que nos leva a reflexão.
Sempre tive o pensamento que toda forma de amor vale a pena, desde que as pessoas se sintam bem e felizes. E trazer esse questionamento a baila no livro é tão importante.
Todos precisamos aceitar as pessoas como são e esse livro nos alerta sobre o fato.
Bom final de semana!
“Saber envelhecer é a grande sabedoria da vida.” (Henri Amiel)
Cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA DE JUNHO 3 livros, 3 ganhadores, participem.
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
Oi Alê, tudo bem?
Nunca tinha visto um livro que tivesse um personagem transgênero e eu fiquei completamente doida para conhecer esta estória. Que coisa mais importante mostrar o ponto de vista deses indivíduos, assim como seus sofrimentos por conta do preconceito, medos... Todos deveriam ler pelo menos uma estória com algum personagem trans, para tentar entender que não se escolhe nascer assim e portanto ninguém tem direito de julgar.
Esse livro vai para a minha wish list.
Beijos
Quando abri a postagem achei que era sobre um outro livro chamado A Fera (também inspirado no conto A Bela e a Fera), mas já no início da resenha notei ser outra releitura. E que trama interessante, Alê! Nossa, a autora foi mesmo bem criativa na abordagem. E pelo visto bem sucedida também. Quero ler. Ótima resenha.
Beijos!
Oie!
Achei a temática do livro ótima, já aproveitando o sucesso da Bela e a Fera, e dando uma nova cara À ele. Também nunca li livros com personagens transgêneros, achei uma oportunidade ótima pra conhecer este tipo de leitura :D
Beijoss
http://tipsnconfessions.blogspot.com
Oii!
Mais uma releitura! Estou vendo bastante desse clássico por aí... Não sei se leria no momento, mas que bom que gostou!!! Beijos,
www.estranhoscomoeu.com
Oi Alê,
A nossa colaboradora lá no blog tem uma opinião muito parecida com a sua e adorou o livro tb. Acho a temática ótima e pelo visto a narrativa está muito boa tb, fico feliz com isso.
Bjs, Mi
O que tem na nossa estante
Oi, Alê!!
Adoro releitura de contos de fada e esse livro é uma releitura muito bacana desse conto!! Fiquei bem curiosa para saber como a história desenvolve-se!! Excelente resenha!!
Bjoss
Olá.
Parabéns pela resenha, muito bem desenvolvida.
Releituras de grandes sucessos, sempre são bem vindas. Gostei da proposta do livro e fiquei bem curiosa para ler!
Dica anotada.
Beijos.
Oi Alê ;)
Adoro releituras, ainda mais sendo do meu conto de fadas favorito!
Gostei das mudanças que o autor fez, como falar sobre temas como a orientação sexual e a identidade de gênero.
Que bom que a narrativa é em primeira pessoa, adoro livros assim. Fiquei mais animada ainda para ler o livro!
Bjos
Oi Alê!
Ai, eu sou apaixonadíssima por releituras!
Adorei a ideia de Brie Spangler de adicionar ao conto de fadas um tema tão contemporâneo que é sexualidade e identidade de gênero, com certeza precisam ser muito discutidos.
É triste vivermos num mundo que não é nem um pouco tolerante em relação à essas coisas, né?
Beijão!
roendolivros.com.br
Oi, Alê!!!
Tenho vontade de ler esse livro desde que a Seguinte começou a anunciar esse livro e preparar a campanha online.
O meu problema é que a grana está bem curta e só estou lendo livros de parceria no momento porque estou com uma fila enorme e pouco tempo.
Mas o assunto sobre os transgêneros é algo que tem chamado muita a minha atenção. Eu li um livro infantil sobre o assunto - publicado pela Galera Record - que foi a coisa mais linda que já tinha visto. Se chama George, caso tenha curiosidade em procurar.
Acho que o boom desse assunto se deve ao sucesso de A Garota Dinamarquesa. Mas mesmo assim vale a pena. Vi que a Seguinte ia lançar esse livro e a Intrínseca outro também sobre o tema, acho que se chama Essa Garota.
Enfim, os dois estão na minha lista e assim que tiver a oportunidade pretendo ler.
Afinal, é como você falou, as pessoas devem se informar melhor e se colocar no lugar do outro. A vida em sociedade ainda é mais fácil para uns que para outros, infelizmente.
Bjs!!
http://livrosontemhojeesempre.blogspot.com.br
É a primeira resenha do livro que leio, e adorei.
Acho muito legal e importante lermos livros sobre assuntos tabus e que sofrem algum tipo de preconceito.
A gente aprende mais e a principalmente, como você bem disse, a ser mais tolerante.
Vou querer conferir.
bjs
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