quinta-feira, 23 de junho de 2016

RESENHA: Lolita

"O tempo todo eu tinha uma consciência acentuada da proximidade de L. e, enquanto eu falava, gesticulava na escuridão providencial e me aproveitava desses gestos invisíveis para encostar na mão dela, em seu ombro e numa bailarina de lã e gaze com que ela estava brincando e que toda hora acomodava no meu colo; e, finalmente, quando acabei de envolver completamente minha radiante querida nessa teia de carícias etéreas, atrevi-me a acariciar sua perna nua ao longo da penugem eriçada da canela, e ria à socapa das minhas próprias piadas, e tremia, e escondia meus tremores, e uma ou duas vezes senti com meus lábios rápidos o calor dos seus cabelos enquanto mergulhava o nariz neles de passagem, ao mesmo tempo que fazia alguma engraçada digressão e acariciava seu brinquedo. Ela também se agitava bastante, tanto que por fim a mãe lhe disse energicamente que parasse com aquilo e atirou a boneca longe no escuro, e eu ri e me dirigi a Haze por cima das pernas de Lo para deixar minha mão insinuar-se pelas costas magras da minha ninfeta e sentir a sua pele através da camiseta de menino." (NABOKOV, p.55, 2011)

Clássico absoluto da literatura, “Lolita” estava na minha lista de desejados há uns dois anos até que decidi que era hora de fazer a leitura.

Humbert Humbert é um homem de meia-idade que se apaixona perdidamente por Dolores, de apenas 12 anos, a quem chama de Lolita. A partir desse momento, uma obsessão tem início e sua vida passa a girar em torno de possuir a sua ninfeta.

Certa vez me disseram que a primeira escolha (e uma das mais importantes) que um escritor deve fazer é definir o narrador de seu livro, pois é ele quem dará forma à história. E “Lolita”, sem dúvida nenhuma, não seria o livro que é se não fosse narrado por Humbert Humbert. Aliás, foi isso que me atraiu na leitura: acompanhar uma história que trata de um tema moralmente condenável, como a pedofilia, pelos olhos da pessoa que comete tal ato.

Algumas coisas são verdadeiramente fascinantes em “Lolita”, a começar pela maneira como Humbert fala sobre a sua atração por ninfetas (termo que, diga-se de passagem, nasceu graças ao livro de Nabokov). Em nenhum momento ele tenta convencer o leitor de que não é errado o que sente, pelo contrário. Ele mesmo reconhece que é monstruoso e que fazer o que ele quer com Lolita é tirar a inocência da criança, mas ele não consegue evitar se sentir assim. Também podemos observar que, independente da idade de Lolita ou do fato de que o sentimento de Humbert está mais próximo da obsessão do que do amor, ele é, basicamente, um homem perdidamente apaixonado por alguém que não pode ter. Isso o faz sofrer e nós testemunhamos o seu sofrimento, o que vem a humanizar um personagem que comete uma monstruosidade.

Outra coisa que me encantou foi observar como Humbert é capaz de nos levar por descrições sensuais e intensas de Lolita, de forma que, por momentos, esquecemos que ela é apenas uma criança. Lembramos disso quando, em meio a descrição, surge algo tipicamente infantil (como estar brincando com uma boneca). O narrador quase nos consegue fazer acreditar que fala da mais sensual das criaturas, porque é assim que ele a vê. São coisas como essas que fazem de Humbert Humbert o típico narrador não-confiável.

Por termos apenas o ponto de vista de Humbert da história, Lolita permanece uma incógnita. Além de não sabemos exatamente o que ela sente, também não sabemos se ela age da maneira como ele alega. Até que ponto aquela de quem ele fala é Dolores e até que ponto ela é Lolita? Seria talvez apenas uma versão que Humbert preferiu usar? Da maneira como relata, ela parece ter todo o controle sobre ele (afinal, tudo na sua vida gira em torno da ninfeta e não há nada que ele não faria para tê-la), mas sabemos que as coisas não funcionam assim, afinal, se trata de uma criança e de um homem que usa de todas as artimanhas ao seu alcance para conseguir o que quer.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, temos o diário de Humbert onde ele fala sobre sua juventude, o despertar do seu desejo por ninfetas e, posteriormente, sobre seus sentimentos por Lolita. Na segunda, graças a um golpe do destino que lhe dá a chance de se aproximar do alvo de sua obsessão, acompanhamos o relato do seu relacionamento. Reconheço que gostei e me envolvi mais com a primeira parte, achando-a mais intensa. A segunda, por sua vez, me pareceu um tanto monótona. Acontece que Humbert tem uma narrativa peculiar. O tom irônico se junta a metáforas, expressões de duplo sentido e a outros floreios (que, a meu ver, indicam que, mesmo se propondo a falar sobre o assunto, o narrador quer camuflá-lo sempre que possível, dando voltas e encontrando maneiras menos explícitas de falar). Isso não quer dizer que a narrativa seja enrolada e deve-se reconhecer que há muita beleza no texto de Nabokov, mas para mim, com o tempo, essas características se tornaram um tanto cansativas, principalmente porque os eventos da trama não são muitos.

Apesar de sexo estar no cerne da história, “Lolita” não é, de forma alguma, um livro erótico, sendo as cenas mais explícitas raras. A verdade é que o impacto psicológico que o desejo por Lolita tem sobre Humbert é mais importante do que, de fato, a consumação desse desejo. Quanto à menina, as constantes chantagens e manipulações que sofre também parecem ser piores do que as agressões físicas.

“Lolita” é um livro único. Desses que todos já ouviram falar e que todos devem conhecer. Sua narrativa desafia o leitor o tempo inteiro a enxergar o que de fato ela conta além das palavras que lhe relatam os fatos. Eu estaria mentindo se dissesse que foi tudo o que eu esperava, mas também estaria mentindo se dissesse que não entendo o porquê de seu status dentro da literatura.

Por fim, vale uma menção à beleza da capa proposta pela Editora Alfaguara que conseguiu retratar, com perfeição e delicadeza, a inocência e sensualidade que permeiam a obra, conseguindo até mesmo insinuar o quanto sua personagem-título permanece um mistério para o leitor.

Título: Lolita (exemplar cedido pela editora)
Autor: Vladimir Nabokov
Nº de páginas: 392
Editora: Alfaguara 

14 comentários:

DESBRAVADORES DE LIVROS disse...

Olá, Mari.
Lolita é uma obra que está na minha lista de leitura faz tempo. Preciso ler a obra e agora, após a sua resenha, tenho ainda mais certeza disso.
Interessante saber que o lado psicológico do protagonista é mais importante do que os fatos propriamente dito. Isso me agrada demais, pois dá uma carga psicológica mais densa ao livro.
Ademais, quero conferir a escrita do autor.
Ótima resenha.

Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de junho. Serão quatro livros e dois vencedores!

Luiza Helena Vieira disse...

Oi, Mari!
Lolita também está nas minhas leituras. Amei sua resenha. Acho que ainda não havia lido nenhuma resenha do livro, mas ainda assim a sua foi muito boa.
Esse é um livro que gera discussões acaloradas por conta do amor para com a criança.
Beijos
Balaio de Babados
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Gabriela CZ disse...

Parece ser uma história bem intensa, Mari. Confesso que só fui conhecer o livro quando você o mencionou em suas metas para 2016, mas fiquei bastante curiosa com o que disse lá e aqui. Parece que o autor acertou em não erotizar a trama pois assim talvez acabasse romantizando um assunto tão polêmico, mas com o impacto psicológico manteve as complicações que o tem. Ótima resenha.

Beijos!

Literaliza disse...

Sou suspeita para falar, amei esse livro! Acho a narrativa do Nabokov maravilhosa e penso que ele conseguiu retratar uma situação delicada como o abuso sexual infantil de maneira muito original. A gente mergulha na cabeça do pedófilo de maneira única e talvez esse seja o maior incompreendimento desse livro na minha opinião: as pessoas não conseguem separar o real da visão deturpada do Humbert e consideram a poesia que é a escrita envolvente do Nabokov uma descrição de um casal apaixonado. Gostei da sua resenha, beijos

literalizza.blogspot.com

Mandy disse...

Sou louca para ler Lolita há anos e sua resenha só me deixou ainda mais curiosa, deve ser no mínimo interessante ver a pedofilia pela visão do pedófilo,
E ler toda uma estória pela visão do cara sem ter certeza se aquilo é real ou se ele "viu" as coisas daquela forma é o mais intrigante do livro,
Não vejo a hora de ler Lolita, sua resenha ficou maravilhosa \o
Beijoos,
Sétima Onda Literária

Vanessa Vieira disse...

Gostei da resenha Mari. Apreciei sua descrição a respeito do livro, principalmente por você ter captado essa natureza obsessiva do protagonista e tê-la expressado muito bem em sua crítica. Outro ponto que eu achei interessante na obra foi o cerne psicológico dos personagens. Com certeza, pretendo ler o livro. Beijo!

www.newsnessa.com

Michele Lima disse...

Oi Mari!!

Tb está na minha lista de livros que ainda quero ler antes de morrer! É um clássico com um enredo que me parece incrível, até mesmo pq tanto Humbert como Dolores parecem ser personagens que nos intrigam!

Adorei a resenha!

Bjs, Mi

O que tem na nossa estante

Denise Simino disse...

Oi Mari,

Sempre que eu penso nesse livro fico com muito pé atrás na leitura, acredito que todos sintam isso em algum momento. Todo o burburinho ao redor do livro faz com que ele seja temido, e sou uma das pessoas que ao mesmo tempo que quer ler, não sabe se vai conseguir se envolver e assimilar tudo.

O que eu tenho medo é de não saber julgar a obra e ficar só no contexto da pedofilia, um assunto horrível. Sendo assim, continuo adiando, mesmo lendo resenhas tão boas quanto a sua.

Bjs, @dnisin
www.sejacult.com.br

x disse...

Oi, Mari!
Já vi tantos livros ou filmes que trazem referencias a Lolita, mas acredita que nunca li o livro? Sua resenha me deixou mega curiosa pra ler!
Obrigada pela dica :)

Beijos,
Giulia | www.1livro1filme.com.br

Carolina Garcia disse...

Oi, Mari!!

Sempre tive curiosidade sobre o livro também. Até cheguei a pegar emprestado uma edição mais antiga, mas não consegui ler a tempo e tive que devolver pois a pessoa ia se mudar.

No fim, não sei se estava com o meu psicológico preparado para debater tais temas pesados como pedofilia.
Uma pena que o autor enrole de certa forma, mas imagino que a intensidade da narrativa deva valer a pena a leitura.

Tenho que arrumar uma nova edição para ler agora! Rsrs

Bjs

http://livrosontemhojeesempre.blogspot.com.br

Leandro de Lira disse...

Oi, Mari!
Eu quero ler esse livro ainda. Creio que não saiba, mas já iniciei a leitura deste livro anos atrás e não consegui concluir, deixei para outro momento. Pretendo dar uma nova chance e gostar tanto quanto você. Parece ser um clássico incrível mesmo e é provável que vá me surpreender em algum momento.
Parabéns pela resenha!
Abraço!

"Palavras ao Vento..."
www.leandro-de-lira.blogspot.com

Kemmy disse...

Essa capa está, de fato, muito bonita. A edição que tenho é uma bem antiga, que tem uma boneca na capa.
Enfim, ainda não li, mas tudo o que li sobre o livro me faz pensar no quão imoral ele é. O dia em que eu pegar pra lê-lo, não sei se conseguirei ir até o fim. Tem gente que chega a romantizar essa obra, e se tem uma coisa que eu sei que ela não é, é romântica.
Mas gostei dos pontos altos que você ressaltou. O fato do narrador ser o pedófilo deve ser bem angustiante em muitos momentos.

Beijos,
Kemmy - Duas Leitoras

Ana I. J. Mercury disse...

Mari, gostei muito da sua resenha, deu pra entender bem a narrativa e acontecimentos do livro.
Mas mesmo assim acho que não lerei.
Não consigo engolir nada relacionado a abusos, pedofilia, traição, etc.
Talvez um dia... É que me deixa muito perturbada ler algo assim.
bjs

Unknown disse...

Oi!
Gostei muito da resenha, já tinha ouvindo falar sobre esse livro mais ainda não conhecia a historia do livro, parece ter um tema pesado e o livro parece tratar muito do lado psicológico, porém esse não é o tipo de livro que gosto de ler !!

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