“Na noite passada, brinquei de culpa por horas. Essa rotina é muito bem-estabelecida. Só tem uma participante: eu. E as lembranças. E a contagem compulsiva. E, flutuando ao fundo, a noção de que a manhã vai chegar cedo demais.” (Stevens, 2014, p. 36)
Após ler inúmeras resenhas elogiosas, comecei “Um dia de cada vez” com boas expectativas, mas infelizmente fui me decepcionando a cada página.
Alexi era uma adolescente normal, mas, após ser estuprada em uma festa, passa a se arranhar diariamente e a contar compulsivamente as barras de ventilação do seu quarto. Na escola, ela tenta manter o sorriso no rosto para evitar que as amigas percebam que algo está errado e trocar letras de músicas com um admirador secreto a ajuda a passar os dias. O sofrimento, ela guarda para si, mas ela não é a única que sofre. Bodee, filho de uma das amigas de sua mãe, sempre foi um menino excluído que gostava de pintar os cabelos a cada dia com uma cor diferente, mas que agora deixou de ser o “menino ki-suco” para se tornar o menino cujo pai assassinou a mãe. Quando os pais de Alexi convidam Bodee para morar em sua casa, uma amizade fundamentada em seus traumas surge entre os dois.
A primeira coisa que me incomodou foi a falta daquela centelha que transforma o personagem – e sua história – em algo real para o leitor. No caso de Alexi, mesmo a narrativa em primeira pessoa não foi suficiente para me fazer sentir a sua dor já que me parecia que ela agia como quem sofre, mas sem sofrer de fato. Como se seguisse uma cartilha que orienta como agem as pessoas que sofrem, querendo acreditar que tinha o sentimento dentro dela, mas sem ter. Sim, ela se arranha compulsivamente e sim ela não tem uma noite bem dormida desde a noite fatídica, mas em nenhum momento eu senti nela a agonia de uma pessoa que chega ao ponto de se mutilar dessa maneira. A máxima “show, don’t tell” (mostre, não conte), que guia todos os melhores livros, passou batida por Stevens que apenas relata os sentimentos da personagem.
Logo me pareceu que a história foi construída pela autora de forma a levantar uma bandeira: “Se você está sofrendo, não se cale. Se aconteceu algo com você, não se culpe”. Assim, todas as escolhas do enredo servem a esse propósito e não ao da história, como se cada cena, diálogo e relacionamento fossem moldados de forma a abordar um tema em específico que sirva para a causa. Com isso, a autora não deixou que sua história respirasse e que seus personagens ganhassem vida, fazendo deles meros bonecos ilustrativos. Não foi surpresa nenhuma para mim constatar, ao final da leitura, que o drama de “Um dia de cada vez” era semelhante a algo que a autora vivenciou e que ela escreveu o livro de forma a compartilhar isso. Stevens inclusive enumera conselhos e os exemplifica com as situações apresentadas no livro, o que só vem a reforçar meu argumento de que sua história e seus personagens não tiveram chance nenhuma de ganhar vida. Veja bem: não acho problema algum em usar uma trama fictícia para abordar temas sérios e levantar discussões (e recentemente li um livro maravilhoso que fazia justamente isso), mas é preciso deixar os personagens viverem a situação e não extraí-los da pedra e esculpi-los até que a vivam. Uma escultura não emociona ninguém.
Usando seus personagens para servirem de exemplo, não é de se estranhar que Stevens tenha ancorado seu livro todo em clichês. A violência familiar, a menina virgem que é violentada, os namoros de colégio, as traições entre adolescentes, as festas e bebedeiras, os pais que não enxergam o que está acontecendo com os filhos, as implicâncias entre irmãos, o menino isolado, os atletas pegadores, os admiradores secretos, os relacionamentos de longa data que passam por incontáveis términos e voltas, são alguns (e a lista continua). Eu até aceito alguns clichês de vez em quando, já que quando bem manipulados eles podem funcionar, mas visto que o clichê e o previsível andam lado a lado, nada me incomoda mais do que um autor querer fazer suspense com eles. Se a identidade do Capitão Letra de Música não é nenhum mistério digno de Hercule Poirot, a do estuprador de Alexi também está longe de ser. Não bastasse ser previsível, a autora insiste em fazer joguinhos com o leitor para manter o suposto suspense, espelhando dois suspeitos de forma que nenhum possa ser eliminado até que ela não queira (e depois da suposta grande revelação, a protagonista decide miraculosamente explicar o porquê de todos os indícios apontarem para outro personagem também). É o tipo de solução fácil que deixa evidente que essa é a primeira incursão da autora no mundo literário.
Quanto mais Alexi se revelava e se descobria para si mesma, mais eu achava a personagem absurda (não entrarei em detalhes para evitar spoilers). Além disso, a relação entre ela e Bodeee, que supostamente deveria ser de mútua salvação, me soou mais de dependência do que de qualquer outra coisa. De repente a menina só encontra força nele e só consegue agir se ele segura a sua mão, não podendo nem decidir por conta própria se as amigas podem passar a noite em sua casa da árvore porque “agora aquele lugar é deles”. A meu ver, isso não é ajuda. É escora. É transferência. É bom que Alexi tenha alguém que a entenda e é melhor do que se arranhar noite após noite? Sem dúvida. Mas nem por isso é saudável porque nenhum extremo é.
Mas algo que preciso reconhecer é que a narrativa de Courtney C. Stevens é fluida e agradável, tanto que li “Um dia de cada vez” muito rápido, mesmo que todos os aspectos do livro estivessem me irritando.
Sei que muitos leitores acharam “Um dia de cada vez” um livro emocionante. Infelizmente não estou entre eles. A história valia a pena ser discutida, mas Stevens se preocupou tanto com a discussão que esqueceu que ela devia ser uma história acima de tudo e que como tal devia envolver e cativar o leitor para então emociona-lo e leva-lo a refletir. Tentou ser tão profundo, que acabou sendo superficial.
Autora: Courtney C. Stevens
Nº de páginas: 230
Editora: Suma de Letras
16 comentários:
Oi, Mari.
Li esse livro também tem uns meses. Confesso que a mesma visão eu tive no sentido de emoção. Acredito que as pessoas gostariam e gostaram dele. No entanto, a todo o momento eu fiquei pensando que ela poderia muito bem ter evitado. Não sei, acredito que essa coisa de falar não (falando em códigos aqui para você e o pessoal não pegar spoiler), penso que não seja o suficiente para ela aceitar e ficar quieta esse tempo todo.
Não senti a emoção que a obra quis nos passar, pelo contrário, eu sentia raiva, isso sim.
Um ponto que me emocionei muito, mas muito mesmo foi com o garoto. O fato de ele ver o próprio pai fazer aquilo foi um pouco chocante para mim e a solidão que ele viva também mexeu comigo. De resto, acredito que a protagonista foi um amontoado de coisas que queria ser intenso demais e não foi absolutamente nada, como você disse.
Olá, ainda não li esse livro, mas não gosto de personagens indecisos e sem sal, então não que seja uma leitura para mim.
mas adorei a resenha!
bjs e até a próxima!
http://diarioelivros.blogspot.com.br/
Oi, Mari! Nunca tinha ouvido falar nesse livro... Não consegui me interessar muito pela história, apesar de sua resenha estar bem esclarecida.
Beijo
mundoemcartas.blogspot.com.br
Acredita que hoje pensei neste blog, adoro ele. Então entrei e vi uma oi de vocês aqui na Cabine. Saudades destas resenhas, quase não tenho tido tempo pra fazer uma visitinha, pois estou trabalhando :'(.
Gostei da sinceridade na resenha e fique com vontade de ler para ver o que eu acharia, o tema abordado tinha tudo para ser bom.
Beijos a toda equipe do blog.
http://cabinedeleitura1.blogspot.com.br/2015/03/resenha-um-novo-amanhecer.html#more
Adorei a resenha e ainda nõa conhecia este livro.
Oie, posso falar? Abandonei Um Dia de Cada Vez, sua resenha foi tão sincera, uma das melhores que li, achei o livro superficial também, tanto que pra mim não rolou.
Beijinhos, Helana ♥
In The Sky, Blog / Facebook In The Sky
Não conhecia o livro e a premissa parece ser um livro bem forte. Mas, que pena que o livro não atingiu todas as suas expectativas e você conseguiu expressar de uma maneira ótima e clara na resenha, me fazendo pensar duas vezes, caso cogite ter esse livro.
Beijos!
livrosdawis.blogspot.com.br
Já tinha visto esse livro mas por algum motivo não tive curiosidade de procurar pela sinopse. A premissa é interessante, mas concordo com você que a história a ser contada precisa ser crível até para transmitir melhor a mensagem a qual o autor se propõe a passar, Mari. Existem excelentes livros com histórias e personagens maravilhosos e que nos fazem refletir sobre suas mensagens. Uma pena saber que esse não é um deles. Mas se a narrativa da autora é fluida talvez se possa ter esperança em suas futuras obras. Ótima resenha.
Abraço!
http://constantesevariaveis.blogspot.com.br/
Interessante, porém, confesso que não sei se eu leria, tô meio que em outra vibe de livros. Mas gostei bastante da resenha!
❤
Beijos
Brilho de Aluguel
Oi Mari, que pena que você não gostou da leitura, mas eu também já vi muitas pessoas dizendo que gostam e outras dizendo que não gostam, é um livro que para mim tirar minha conclusão, terei que ler ainda!
Beijos
http://www.oteoremadaleitura.com
Nossa, que chato :/ o autor as vezes se perde no que escreve, ela deve ter se focado muito em dar conselhos do que mostrar de verdade o sofrimento da personagem, e isso da dependência do casal também deve dar nos nervos, não é dessa forma que ambos vão aprender a viver novamente.
xx Carol
http://caverna-literaria.blogspot.com.br/
Tem post novo no blog sobre filmes, vem conferir!
Cara, tua resenha ficou ótima. Não li esse livro ainda, mas se ler, já vou me preparar pra não me decepcionar. Acho que nem todos tem talento pra escrever sobre certos assuntos, principalmente os mais delicados, parece que esse é o caso da autora, porque convenhamos, uma história que não consegue emocionar o leitor mal pode ser uma história.
Beijos!
vicioliteral.blogspot.com
Que coisa gente!!!
Todos que conheço amaram o livro, e não estou falando de blogueiros não, estou falando de amigas que nem acompanham blogs mesmo.
Fiquei chocada agora!!
Bom, se um dia eu ler vou me preparar para isso com certeza!!!
Adorei a resenha!!!
Bjks
Lelê - http://topensandoemler.blogspot.com.br/
Gente, eu só tinha lido resenhas positivas sobre esse livro e estava louca para ler. Ainda continuo com vontade, até para saber de qual lado vou me posicionar, mas analisando os personagens, esse livro me lembrou, de longe, Mar da tranquilidade, que amei. Ainda quero ler sim!!
Bjs, @dnisin
www.seja-cult.com
Oi, Mari!
Ainda não conhecia esse livro, mas, infelizmente, a história não me interessou - especialmente ao saber que a autora preferiu discutir mais, ao invés de trabalhar na história em si, assim como em seus personagens. Uma pena, pois ao abordar tais temas, ela poderia ter escrito uma história tocante, envolvente, bem elaborada e com boas discussões - tudo junto.
Adorei sua resenha!
Beijocas.
http://artesaliteraria.blogspot.com.br
O que eu pude perceber do livro lendo a resenha foi que a estória devia ser daquelas que nos emocionam, mas acabam não fazendo. Fiquei aqui pensando "cadê a profundidade dos personagens?", porque se a situação da personagem é grave desse jeito, o leitor precisa sentir o sofrimento dela para se envolver na estória, e pelo que você disse, foi exatamente isto que faltou... Enfim, se for tudo isso mesmo, eu dispenso.
Bem Mari!
Por sua resenha o livro me pareceu um tanto engessado, como se fosse um guia a ser seguido por quem já passou por situação semelhante...
A discussão é importante, porém tem de ser bem conduzida para que haja bons resultados.
Gostei da sua análise sincera.
Cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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