sábado, 17 de dezembro de 2016

RESENHA: A Visita Cruel do Tempo

“Em alguns dias, de manhã, do lado de fora da minha janela o sol parece falso. Fico sentada à mesa da cozinha jogando sal nos pelos do meu braço e uma sensação me sacode por dentro: acabou. Tudo passou sem mim.” (EGAN, 2012, p.88)

Li todos os livros de Jennifer Egan e este, seu mais famoso, vencedor do Pulitzer, unanimidade entre os leitores como a sua melhor obra, ficou para o final. A expectativa era muita e Egan, mais uma vez, não decepcionou.

Bennie é um executivo da indústria musical. Sasha é sua assistente cleptomaníaca. Na adolescência, Bennie fazia parte de um grupo de amigos dentre os quais Scotty se destacava pela beleza e pelo talento. Através de Jocelyn, outra amiga, Bennie conheceu Lou que foi seu mentor no mundo musical. Bennie casou com Stephanie, irmã de Jules, jornalista de celebridades que foi preso após atacar Kitty, uma jovem atriz que, anos depois do incidente, foi contratada por Dolly, uma relações públicas em decadência, para melhorar a imagem de um general. Sasha é sobrinha de Ted, um amante das artes, e na adolescência foi amiga de Rob que tentou suicídio.

Um verdadeiro labirinto. É isso que “A Visita Cruel do Tempo” é. O mais fascinante e complexo livro de Jennifer Egan que, arrisco dizer, é espetacular em qualquer coisa se proponha a escrever.

São milhares de histórias e personagens que se cruzam e intercalam sem obedecer nenhum tipo de regra. Passado e presente se confundem, coadjuvantes e protagonistas também porque o tempo e seus efeitos é o verdadeiro protagonista. Em um momento acompanhamos Bennie, no outro Sasha. Depois voltamos a adolescência de Sasha para lá na frente encontrá-la novamente em uma fase mais adulta e, ainda, em uma fase anterior àquela da adolescência. Isso é apenas um exemplo, pois acontece com vários dos personagens. E justo quando você pensa que autora já tem elementos demais na trama, um novo grupo de personagens surge.

Nesta história não existe começo, meio e fim. Na verdade, tudo o que existe são meios. Vários meios. A qualquer momento podemos voltar a encontrar qualquer personagem, em qualquer fase da vida, e cada nova fase pode nos apresentar para mais uma coleção de novos personagens coadjuvantes, mas que logo depois serão protagonistas de suas próprias histórias que, por sua vez, trarão novos coadjuvantes-possíveis-futuros-protagonistas. Confuso? Nas mãos de outro autor provavelmente sim, mas não nas de Jennifer Egan. É admirável o domínio da autora sobre cada personagem, principalmente por que são eles e, não os acontecimentos, o verdadeiro fio condutor do livro, pois essa é uma história sem norte. Não sabemos para onde vamos, nem o que nos guia, mas apesar disso o leitor não se perde. Mesmo sem protagonistas e com todos os limites entre passado, presente e futuro sendo esfumaçados, tudo se sustenta por conta própria porque tudo tem profundidade e Egan é uma daquelas raras autoras que consegue transformar um personagem em uma pessoa real com apenas poucas frases.

Além disso, Egan sabe dosar tudo de modo a fazer seu leitor se entregar completamente a uma história, esquecendo todas as outras naquele momento, mas nunca se desligar por completo a ponto de elas perderem a importância (o que faria o leitor se sentir desconectado ao reencontrar os outros personagens).

Eu sinceramente não sei quantos arcos narrativos passam por “A Visita Cruel do Tempo” e é absurdo constatar que o livro tem meras 300 páginas sendo que conta tantas histórias e consegue se aprofundar em todas elas. É como se os personagens fossem painéis escondidos atrás de várias janelas. Essas janelas vão se abrindo sem uma ordem específica e cada vez que se abrem nos mostram as vidas por trás delas. Algumas janelas não chegam a ser abertas, pois tem fases que não precisamos acompanhar. Alguns painéis veremos mais, outros menos.

Quanto à narrativa, a autora brinca alternando entre primeira e terceira pessoa e ainda estilos completamente diferentes (meu destaque vai para os trechos de Rob, pela força que exprimem), inclusive há uma personagem que conta a sua história através de um diário todo composto por gráficos e não por textos.

“A Visita Cruel do Tempo” é um livro intenso e melancólico, pois todos os personagens estão infelizes de alguma forma. Em um momento sonham com determinada coisa. Em outro, as conseguiram mas não são felizes por outros motivos.

Porém, o que faz de “A Visita Cruel do Tempo” um livro genial é também o seu calcanhar de Aquiles. Por ter tantos personagens, se torna difícil para o leitor se apegar a eles, mesmo que Egan consiga nos fazer conhece-los a fundo. Seus dramas nos tocam, mas a conexão é superficial. Outra consequência da estrutura narrativa é que, por ser uma história de mil começos e mil finais, o desfecho soa como tantos outros mini-desfechos que vimos ao longo da narrativa, não dando uma sensação de conclusão. Nos despedimos de alguns personagens na metade do livro, sem ter ideia disso. Outros não esperávamos reencontrar e reencontramos, então como saber que não os encontraremos novamente? Isso, claro, não desmerece em nada o livro, mas diminui o impacto de sua conclusão.

Arrependimentos, coisas que foram deixadas para trás e a expectativa de um futuro melhor são todas coisas que o tempo define e altera e Egan mostra este efeito sobre as pessoas, seja positivo (as livrando de traumas, as tirando do fundo do poço, as fazendo amadurecer) ou negativo (destruindo seus sonhos, as rebaixando para o fundo do poço).

“A Visita Cruel do Tempo” é um livro ousado e arriscado e só funciona graças ao domínio de Jennifer Egan sobre seus personagens. Complexo, mas em nenhum momento difícil. Uma colcha de retalhos absolutamente genial!

Título: A Visita Cruel do Tempo
Autora: Jennifer Egan
N° de páginas: 336
Editora: Intrínseca

13 comentários:

Na Nossa Estante disse...

Oi Mari tudo bem?

Não li ainda “A Visita Cruel do Tempo”, mas fiquei interessada depois da sua resenha. Bem interessante ter vários personagens e arcos e ainda assim não ser muito longo, só mostra que a autora é precisa em sua narrativa. Parece ser uma obra incrível mesmo!

Bjs, Mi

O que tem na nossa estante

RUDYNALVA disse...

Mari!
Fiquei zonza só de sua explanação sobre as personagens e é justo o que iria falar, com tantos personagens, fica bem difícil uma conexão com eles durante todo enredo, sem contar que é muita gente melancólica junta...
“Natal não são as luzes lá fora, mas a Luz que brilha em seu coração... Feliz Aniversário, Senhor!” (Daniela Raffo)
Boas Festas!
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP Comentarista de DEZEMBRO ESPECIAL livros + BRINDES e 4 ganhadores, participem!

Luiza Helena Vieira disse...

Oi, Mari!
Eu não sabia nem do que se tratava esse livro. Sempre achei a sinopse, e a capa, um tanto confusa. Agora já sei que fazem jus ao livro.
Não sei se seria uma boa leitura pra mim porque eu tendo a me perder em histórias com muitos arcos.
Beijos
Balaio de Babados
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Participe da promoção de três anos de Um Oceano de Histórias
Participe do Sorteio de Final de Ano

Alessandra Salvia disse...

Oi Mari,
Acredita que não conhecia o livro?
Mas como a Luiza falou... Acho a capa um pouco confusa então não daria a devida atenção se não fosse sua resenha.
Beijos
http://estante-da-ale.blogspot.com.br/

Gabriela CZ disse...

Confesso ter ficado um tanto confusa com a relação de personagens, Mari. Mas se a autora conseguiu criar histórias concisas para eles e misturá-las sem deixar o livro confuso parece mesmo incrível. Sempre que você fala de Jennifer Egan me deixa com vontade de conferir, e agora não foi diferente. Ótima resenha.

Beijos!
Portal Andar de Cima

Alice Martins disse...

Oi Mari, tudo bem?

O livro parece ser incrível, gosto da ideia de misturar várias abas com várias histórias. Saber que a autora conseguiu manusear isto e não tornar a leitura cansativa ou pertubarda já me deixa curiosa. Tenho curiosidade de ler algo da autora, sempre ouço maravilhas.
Parabéns pela resenha, ficou fabulosa!!!

Beijos,

Gnoma Leitora

Tô Pensando em Ler disse...

Enquanto a outra resenha me deixou na dúvida se leria ou não, essa aqui me fez querer o livro agora, rsrs.

Adorei a resenha e preciso conhecer essa genialidade toda ♥

Bjks

Lelê

Sil disse...

Olá, Mari.
Enquanto lia pensei, que confusão é essa? hehe. Mas é como você disse nas mãos de um bom autor tudo se torna simples. E ainda mais tanta coisa em 300 páginas? Acho que vou ter que ler e conhecer a escrita dela.

Blog Prefácio

Loysla Lara disse...

Olá, Mari.

Nossa fiquei perdida aqui kkk Acho que eu não me daria bem com o livro, pois ficaria bem perdida.Parabéns pela resenha!
Beijos,
https://teattimee.blogspot.com.br/

Unknown disse...

Faz muito tempo que estou curiosa para ler este livro, uma vez cheguei até colocar no carrinho, mas por algum motivo acabei tirando (que arrependimento).

Sempre quis ler algum livro da autora, mas este é o que mais me chamou a atenção.

DESBRAVADORES DE LIVROS disse...

Olá, Mari.
Esse livro é completamente diferente de tudo que já li e exatamente por isso quero conferir a obra. Isso da autora alternar narradores, estilos, personagens e tão ousado. Como adoro essas experiências literárias, fiquei fascinado.
Sem dúvidas, vai para a meta de leituras.

Desbravador de Mundos - Participe do top comentarista de dezembro. Serão dois vencedores, dividindo 3 livros.

Luciana Campos disse...

Nossa, Mari, se só a sua resenha já embolou minha cabeça com tantos personagens, imagine o livro! Achei bem diferente e muito complexo, eu sei que só conseguiria aproveitar um livro desses 100% se tirasse um dia pra lê-lo de uma vez só, já que com tantas tramas e personagens, requer total atenção.
Super concordo que isso pesa na empatia que a gente tem pelos personagens, mas contanto que a trama como um todo nos empolgue com um por vez, acho que dá pra relevar.

Ana I. J. Mercury disse...

Que resenha linda, Mari! Deu pra ver o quanto você ama os livros da autora.
Bem, eu fiquei muito curiosa pela sua resenha, então talvez dê uma chance.
Mas confesso que comecei O Torreão da autora ano passado e não consegui lê-lo de jeito nenhum!
Por fim, dei de presente para um amigo, que amou por sinal kkkkkk
Só que daí fiquei com essa birra da autora kkk
bjos

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