sexta-feira, 14 de julho de 2017

RESENHA: As Garotas

“Uma grande parte do desejo, naquela época, era um ato intencional. Tentando incessantemente moldar as quinas ásperas e decepcionantes dos meninos no formato de alguém que pudéssemos amar. (...) Mais tarde eu veria isto: como o nosso amor era impessoal e ávido, vasculhando o universo, na esperança de um hospedeiro que moldasse nossos desejos.” (CLINE, 2017, p.45)

O que leva uma pessoa a ser sugada para dentro de um culto? Que espécie de vazio precisa ser preenchido para que algo tão extremo como o fanatismo ganhe espaço? Foi esse aspecto da temática de “As Garotas” que me fisgou imediatamente. Depois, lembrei de ter lido Stephen King recomendar a leitura. Quando peguei o livro em mãos, vi um elogio de ninguém mais, ninguém menos, que Jennifer Egan. Com as expectativas em alta, eu esperava um suspense, mas a autora me levou por um caminho diferente (talvez ainda mais tortuoso) e não decepcionou.

Em 1969, aos 14 anos, Evie Boyd vive com a mãe, com quem mantém um relacionamento distante, tem uma melhor amiga, sobre quem às vezes se pergunta o que as mantém amigas, e sente uma série de complexos e inseguranças, como a maioria das adolescentes. Até o dia em que ela vê Suzanne pela primeira vez. Usando roupas velhas, revirando latas de lixo com outras duas meninas, Suzanne emana uma áurea de autoconfiança, desapego e sensualidade que hipnotiza Evie. Logo elas se aproximam e Evie descobre que as meninas vivem juntas em uma comunidade comandada pelo carismático Russell. Mas o que Evie descobre depois é que há outras facetas em Russell e que aquelas pessoas são capazes de uma violência que ela nunca imaginara penetrar na sua vida.

A narrativa se divide entre o presente e 1969 e intercala as duas fases constantemente. Ambas são narradas por Evie já adulta e é possível perceber que, mesmo que os eventos estejam distantes, eles deixaram uma marca na sua vida. Não demoramos a descobrir que o culto foi responsável por uma chacina, embora ainda não temos conhecimento das circunstâncias e das pessoas envolvidas. Tudo o que sabemos é que, por alguma razão, Evie não fez parte de tal ato. Mas poderia ter feito.

São poucas as cenas no presente. Pouco sabemos sobre como Evie vive atualmente ou por que está passando uns dias na casa de um amigo que não está lá (coincidentemente, a mesma situação em que estavam as vítimas da chacina na noite fatídica). Tudo o que sabemos é que ela deveria ter a casa somente para ela, mas é surpreendida pelo filho do amigo e sua namorada, Sasha. Em Sasha, Evie vê o reflexo das inseguranças que ela mesma tinha quando adolescente, o que torna fácil perceber que essas angústias não tinham a ver com a década de 60 ou mesmo com a influência do culto. São questões atemporais que afligem meninas mesmo tantas décadas depois.

O foco da trama poderia ser a chacina e isso teria rendido o ótimo livro de suspense que eu acreditei que “As Garotas” seria. Mas Emma Cline vai além disso e o torna um drama sobre amadurecimento, insegurança e carência. Sobre a necessidade que todos temos de nos sentirmos especiais e de termos pessoas em nossas vidas que proporcionem isso. É um livro melancólico e intenso nas suas entrelinhas. O tempo todo, Evie lembra de uma fase em que suas emoções estavam à flor da pele e a nossa percepção de que as coisas não vão acabar bem não está relacionada apenas à chacina, mas sim ao que captamos do olhar que Evie dirige ao passado, mesmo que a tragédia não tenha tido resultados diretos na vida dela.

Se a leitura for direcionada à chacina, certamente o leitor irá se decepcionar. É preciso saber que a história é sobre Evie e, mais ainda, talvez, sobre os personagens que ela encontrou no caminho e o impacto que tiveram na vida dela. Principalmente Suzanne. Esta, aliás, é uma personagem interessantíssima. Pouco sabemos sobre seu passado, sobre o que a levou ao culto, quais as suas intenções e o tipo de sentimentos que tem por Evie. Captamos indícios, da mesma forma que a narradora, mas estamos presos a sua visão parcial dos eventos, o que nos faz ver Suzanne por seus próprios olhos. Ela é símbolo de liberdade. Alguém que parece se sentir à vontade dentro do próprio corpo, sendo quem é, vivendo como vive. Tudo que Evie queria sentir sobre si mesma. Enquanto todas vêem em Russell o centro do universo, Evie vê isso em Suzanne. Na verdade, o que Evie busca é se encontrar. Ela não esteve presente na chacina, mas a influência de Suzanne sobre ela é tanta que nos perguntamos o que ela teria feito se tivesse estado lá.

Russell também é um personagem complexo e, assim como Suzanne, seu passado se mantém uma incógnita. Como ele deu início ao culto? Houveram outros atos de violência no seu passado? Quais os planos dele para aquelas pessoas que o cercam? São respostas que nunca encontramos porque o livro não gira em torno delas e sim do amadurecimento de Evie.

O interessante é que em nenhum momento a protagonista se entrega totalmente ao culto. Ela se divide entre a vida no rancho, ao lado de Suzanne e os outros, e a casa de sua mãe, a “vida normal”. Ela não pertence a lugar nenhum. Não consegue se encaixar porque não sabe se encontrar, não sabe quem é. E mesmo que seja seu olhar adulto que nos apresenta toda a história, ainda assim não temos certeza se ela descobriu as respostas para essas perguntas. Seria a Evie adulta uma mulher feliz? A minha impressão é que não há brilho na vida da protagonista. Como se a luz estivesse apagada e ela nunca tivesse encontrado o interruptor para acendê-la.

Em seu livro de estreia, Emma Cline usa uma tragédia como pano de fundo para mostrar como é fácil seguir por um caminho sem volta quando não sabemos para onde se quer ir. Quando tudo que se quer é pertencer a algum lugar, não importa que lugar seja. Quando se espera que as respostas que chegam de fora calem as perguntam que brotam de dentro.

Título: As Garotas
Autora: Emma Cline
N° de páginas: 336
Editora: Intrínseca
Exemplar cedido pela editora

Compre: Amazon
Gostou da resenha? Então compre o livro pelo link acima. Assim você ajuda o Além da Contracapa com uma pequena comissão.

18 comentários:

Lana Silva disse...

Que estória intensa, e a primeira vez que leio a resenha deste livro, e gostei bastante do que li. A fática tragedia que acontece e só um pano de fundo para que a estória realmente se desenvolva, e pelo visto e a partir disto que vamos acompanhando a jornada desta garota, no qual não pertence a lugar nenhum, e isto me pareceu gerar um angustia, ao ponto de não conseguir viver em lugar onde pode receber atenção, amor, carinho. Fiquei bastante curiosa para saber mais sobre esta trama, e qual será seu desfecho.

Participe do TOP COMENTARISTA de Julho, para participar e concorrer aos livros "O Casal que mora ao lado" e "Paris para um e outros contos".
http://petalasdeliberdade.blogspot.com.br/

Gabriela CZ disse...

Não tinha noção sobre o que era esse livro mas agora fiquei intrigada, Mari. Parece profundo, intenso, reflexivo e envolvente. Com questões que, acredito, permeiam todos ao menos uma vez na vida. Tenho que ler. Ótima resenha.

Beijos!

Diane disse...

Olá...
Adorei sua resenha!
Gostei bastante da premissa de AS GAROTAS, não sei em que mundo ando vivendo, mas, ainda não tinha visto nada sobre esse livro... ME sentindo um et agora rsrs...
Achei a premissa legal, gostei do tipo de narrativa e os elementos que você comentou na resenha me animou a ler.
Bjo

http://coisasdediane.blogspot.com.br/

Diane disse...

Olá...
Adorei sua resenha!
Gostei bastante da premissa de AS GAROTAS, não sei em que mundo ando vivendo, mas, ainda não tinha visto nada sobre esse livro... ME sentindo um et agora rsrs...
Achei a premissa legal, gostei do tipo de narrativa e os elementos que você comentou na resenha me animou a ler.
Bjo

http://coisasdediane.blogspot.com.br/

Marta Izabel disse...

Oi, Mari!!
Nunca li nada sobre esse livro, a estória é muito interessante. Sem dúvida a leitura dessa obra é bem instigante e diferente gostei muito tema que só tinha visto em filmes e séries.
Bjoss

Márcia Saltão disse...

Oi, tudo bem?
Fiquei curiosa pela leitura do livro, pois a premissa indica um enredo forte, envolvente e reflexivo.
Creio que nunca li nada nesse estilo, mas a proposta da autora é bem interessante.
Excelente resenha.
Beijos.

Anônimo disse...

Que história bem intensa, e pelo que li no início, você esperava uma coisa e a escritora te surpreendeu! Gosto de coisas assim

Eu conheci agora seu blog e estou simplesmente apaixonada por ele! Estou seguindo seu blog! Sempre que eu puder estarei por aqui acompanhando. Estou com metas para esse mês, agradeço se puder ir lá e dar uma forcinha! ♥
Espero você por lá! Beijos,

batomveermelhoblog.blogspot.com
@batomdamanda

Ana Clara Magalhães disse...

Oi Mari!

Não conhecia esse livro, mas a trama me deixou bastante intrigada. Pelo enredo, eu também esperaria que a história girasse em torno da tragédia e suponho que seria bem legal também, mas gostei do fato de ser sobre Evie e sua vida acima de qualquer coisa. Esse negócio de fanatismo parece algo absurdo, mas aí a gente lembra que tem tanta gente fanática por coisa tão, sei lá, comuns, como igreja... É a vida, não é?

Beijo! <3
http://www.roendolivros.com.br/

Na Nossa Estante disse...

Oi Mari, tudo bem? Acho que essa parte do culto e fanatismo bem interessante, mesmo a autora puxando menos para o suspense e mais para o drama. Gostei da premissa e com tantos elogios de autores famosos, fica difícil não querer ler!

Bjs, Mi

O que tem na nossa estante

Carolina Garcia disse...

Oi, Mari!!

Sua resenha está excelente. Achei o enredo extremamente triste, mas muito interessante.
Acredito realmente que muitas pessoas se perdem na vida, seja em cultos ou vícios, por não conseguirem encontrar a própria voz.
Você escreveu muito bem. :)

Bjs

http://livrosontemhojeesempre.blogspot.com.br

Felipe disse...

Oi Mari,
Adorei o post, fiquei super curioso para conferir!!
Blog Entrelinhas

Giulianna Santicioli disse...

Gostei bastante da premissa do livro, só acho que me interessaria mais se a autora focasse mais nos cultos, mas mesmo assim parece ser um livro ótimo.
Beijos!

Monique Larentis disse...

Esse livro parece ter uma história que carrega bastante aprendizado para o leitor..

www.vivendosentimentos.com.br

Unknown disse...

Hey, Mari!
Eu não sabia nada sobre esse livro e a capa nunca me chamou muito atenção, mas agora com a sua resenha, que ficou sensacional aliás, fiquei extremamente curiosa por essa leitura. Parece ser daqueles livros complexos que conseguem mexer com o leitor de forma profunda. Com certeza uma leitura que vale a pena ser feita.
Mil beijokas - Entre um Livro e Outro

RUDYNALVA disse...

Mari!
A incerteza de Evie traz um drama profundo e que mexeu muito com sua vida, principalmente pela influência de Suzanne, que no fundo, era o esteriótipo de quem ela mesma queria ser, pertencer a algum lugar e sentir-se livre.
E todos esses problemas foram levados para vida adulta...
Gosto de livros que questionam o caminho a ser seguido e uma pena que a chacina não tenha sido mais desenvolvida no livro.
Uma semana esplendorosa!
“O amor é a única loucura de um sábio e a única sabedoria de um tolo.” (William Shakespeare)
Cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA DE JULHO 3 livros, 3 ganhadores, participem.

Unknown disse...

Fiquei conhecendo este livro agora, não sabia da existência dele.
Parece ser uma leitura intensa, porém confesso que não me chamou muito a atenção.

Sil disse...

Olá, Mari.
Eu não conhecia esse livro ainda. E até leria se fosse exatamente o que ele não foi hehe. Eu me interessaria mais se o foco fosse o suspense e as perguntas que você fez sobre o Russel tivessem sido respondidas. Mas pode ser que eu leia ele futuramente.

Prefácio

Ana I. J. Mercury disse...

Eita, mas que história intensa.
Parece ser supertriste, e cheio de mistérios e muito suspense.
Não é do meu tipo , provavelmente não lerei.
Mas fiquei curiosa. Não tem como não ficar kkkkk
bjs

Postar um comentário

 

Além da Contracapa Copyright © 2011 -- Template created by O Pregador -- Powered by Blogger