“DUMBLEDORE: Harry, nunca existe uma resposta perfeita nesse mundo confuso e perturbado. A perfeição está fora do alcance da humanidade, fora do alcance da magia. Em cada momento luminoso de felicidade há esta gota de veneno: o conhecimento de que a dor voltará. Seja sincero com aqueles que ama, mostre sua dor. Sofrer é tão humano quanto respirar.” (ROWLING; TIFFANY; THORNE, 2016, p. 275)
A oitava história de Harry Potter, dezenove anos depois. Alguém em sã consciência não ficou enlouquecidamente ansioso assim que soube que isso ia existir?
Nunca foi fácil ser Harry Potter, mas também não é fácil ser filho de Harry Potter. Alvo Severo, o segundo filho de Harry e Gina, agora frequenta Hogwarts e enfrenta o peso de levar o nome do menino que liderou a batalha contra o maior bruxo das trevas que já existiu.
Fugi o máximo possível de qualquer informação sobre “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada”. Por isso, quando comecei a ler, tudo que eu sabia era que a tal criança do título era Alvo Severo. Dali para frente, tudo foi surpresa. Para que você também tenha suas surpresas, aviso: essa resenha contém alguns spoilers.
Antes de mais nada é preciso reconhecer a coragem de J.K. Rowling em dar continuidade à história de Harry Potter, pois isso significa mexer em uma obra irretocável. Há nove anos ganhamos um final cheio de aventura e ação, mas também lindo e emocionante. E se esse sentimento se perdesse? E se essa nova história estragasse tudo? E se, ao ler, você pensasse: “Esses não são os personagens que eu conheço”? Seria um sentimento terrível. Mas estamos falando da pessoa que teve a genialidade de criar esse mundo tão rico e é claro que ela não decepcionaria agora. Dito isso, eu não esperava muitas das coisas abordadas nesse livro, mas fiquei bem satisfeita com o que encontrei.
A começar pela relação de Harry e Alvo. Eu jamais imaginei Harry (que, acima de tudo, sempre sonhou em ter uma família) tendo problemas com seu filho. Jamais imaginei que o menino pudesse sentir qualquer outra coisa pelo pai que não idolatria. E jamais (jamais!) imaginei que ele não seria um destaque em Hogwarts, que não seria popular, que iria para a Sonserina (!) e que teria como melhor amigo o filho de Draco Malfoy (ah, como o mundo bruxo dá voltas...).
Acredito que Rowling enfrentou uma série de desafios com essa história. O primeiro deles: como é um mundo após a queda de Voldemort? Obviamente não pode ser perfeito, então quais são os desafios? Como vivem aqueles que nunca conheceram um mundo assombrado por Voldemort? E, principalmente, quem será o nosso vilão se antes tínhamos um dos maiores vilões de todos os tempos? É uma responsabilidade como substituir Darth Vader! E a autora arruma outra saída que eu jamais havia imaginado: Voldemort teve um filho! E o que esse filho quer? Trazer seu pai de volta para dominar o mundo bruxo. Simples e genial.
Outro desafio era que o foco não deveria ser tanto nos nossos velhos conhecidos e sim nos novos personagens. Como fazer isso de forma que não estranhássemos e ainda assim víssemos as características que nos fizeram amar a saga para começo de conversa? Fácil: qual a essência de Harry Potter? A aventura, a amizade e a importância de se fazer a coisa certa. E é isso que vemos acontecer com Alvo e Escórpio Malfoy. Uma amizade verdadeira que se provará diante dos maiores perigos.
“ESCÓRPIO: O mundo muda e nós mudamos com ele. Estou melhor neste mundo. Mas o mundo não é melhor. E eu não quero isso.” (ROWLING; TIFFANY; THORNE, 2016, p. 207)
“ALVO: Amigo, agora que temos isto (...) nossa jornada está só começando.
ESCÓRPIO: Só está começando e já quase nos matou. Ótimo. Vai ser ótimo.” (ROWLING; TIFFANY; THORNE, 2016, p. 94)
Quanto aos nossos velhos amigos, é muito gostoso ver que as relações continuam as mesmas e que eles tomaram os rumos que poderíamos ter previsto. Rony continua engraçado, Hermione continua um poço de responsabilidade (e agora é Ministra da Magia – que orgulho!), Harry continua tendo um enorme coração (e por vezes o peso do mundo nas costas) e Gina continua forte e determinada. Nesse sentido, um dos personagens mais interessantes de reencontrarmos é Draco Malfoy, que ao longo da saga foi se mostrando, aos poucos, menos filho de Lucio do que se poderia supor. Draco nunca será humilde, mas há muito deixou de ser o menino insuportavelmente arrogante que conhecemos em “Harry Potter e a Pedra Filosofal” e há uma cena ótima (um dos diálogos mais bonitos da peça/livro, na minha opinião) em que ele confessa ter sonhado em ter a amizade que Harry, Rony e Hermione tinham. Agora, Draco é um pai como qualquer outro. Preocupado com seu filho, cometendo muitos erros, mas sempre tentando acertar.
Outra escolha que me agradou muito foi a revisitação de alguns momentos icônicos da saga (como o Torneio Tribruxo) e o uso o vira-tempo para nos mostrar como teria sido o destino dos personagens caso algumas escolhas tivessem sido diferentes. Mas mais do que tudo, achei incrível que o ápice da história estivesse ligado justamente ao momento em que tudo começou: a noite em que Voldemort matou Lílian e Tiago em Godric’s Hollow. Ali Harry venceu Voldemort mais uma vez, mas também reviveu a maior perda da sua vida. Um momento glorioso, carregado de tristeza e beleza, como a saga sempre soube entregar.
É preciso mencionar também que este texto não é uma narrativa convencional (e não foi escrito por JK Rowling e sim baseado no argumento dela para a peça), afinal se trata de uma versão especial de um roteiro teatral. Por isso, a leitura causa estranheza já que não temos uma narrativa contínua, apenas breves comentários que nos permitem visualizar as cenas. Além disso, os diálogos são marcados pelo nome do personagem que fala. Mas logo é possível se acostumar e a leitura flui muito rápido (tanto que li em poucas horas).
Sim, Alvo é um tanto imaturo, mas ele é apenas uma criança que - assim como seu pai cresceu sendo “o menino que sobreviveu” - cresce sendo “o filho de Harry Potter” e ainda não encontrou uma maneira de lidar com as decepções e superá-las. Sim, Harry comete erros como pai, mas ele está em uma nova fase da vida, enfrentando novos desafios, muitas vezes sem saber como agir diante deles. Não, Alvo e Escórpio não têm o carisma nem a força de Harry, Rony e Hermione, mas a saga nunca se fez apenas de seus protagonistas e sim de um conjunto de situações e essa essência se manteve. Isso, para mim, era o mais importante. “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada” não tem a grandiosidade dos livros originais da saga (e nem poderia ter, já que se trata de uma trama avulsa, mas que precisa estar linkada a todo o histórico da série), mas é um retorno competente ao mundo que aprendemos a amar e que jamais esqueceremos. Sem dúvida, enche o coração do leitor de saudade e coloca um sorriso no seu rosto.
Sempre há lugar para as trevas, mas também sempre há lugar para a amizade. E é essa a mensagem que “Harry Potter” reforça mais uma vez: que o amor e a lealdade são os maiores poderes de que alguém pode dispor.
“GINA: Harry, você tem um dos maiores corações de qualquer bruxo que já viveu...” (ROWLING; TIFFANY; THORNE, 2016, p. 138)
Título: Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (exemplar cedido pela editora)
Autor: J.K. Rowling, John Tiffany & Jack Thorne
N° de páginas: 343
Editora: Rocco