“Esse é o problema com as coisas vivas. Não duram muito. Gatinhos num dia, gatos velhos no outro. E depois ficam só as lembranças. E as lembranças se desvanecem e se confundem, viram borrões...” (GAIMAN, pag.58, 2013)
Minha primeira experiência com o aclamado Neil Gaiman, “O Oceano no Fim do Caminho” é um livro singular. A mistura de realidade com fantasia e do encantador com o assustador, onde não apenas os acontecimentos mas também os sentimentos são vívidos e as nuances se mesclam de tal forma que é impossível distinguir seus contornos e estabelecer seus limites.
Um homem de quarenta anos volta para a casa onde passou a infância para um velório. Cansado e querendo se distanciar de todos por um minuto, ele dirige sem rumo por estradas conhecidas até que se depara com um lugar no qual não pensava em muito tempo: a fazenda das Hempstock, onde morava sua amiga Lettie que chamava o lago no fim do caminho de um nome diferente. Era mar? Não, não era mar. Para Lettie Hempstock, o lago no fim do caminho era um oceano e é ao lembrar disso que ele lembra de tudo.
Narrado em primeira pessoa por um personagem cujo nome não sabemos, “O Oceano no Fim do Caminho” é o olhar de um adulto sobre a sua infância, tempo em que era um menino solitário, cujos melhores amigos eram livros, até que conheceu Lettie: uma menina diferente, de uma família diferente, que o acolhe e promete protegê-lo de tudo.
Gaiman cria acontecimentos fantásticos e personagens cativantes, mas é a sua habilidade de conseguir mostrar para o leitor o mundo de uma criança vista por ela mesma quando adulta que dá o tom de “O Oceano no Fim do Caminho”. Não é um livro narrado por uma criança inocente, nem por um adulto cético, e sim por um adulto disposto a relembrar sua infância exatamente como ela foi, com todos os sentimentos que ela lhe trouxe e as proporções que as coisas atingem na infância.
Em “O Oceano do Fim do Caminho” o que importa não são tanto os acontecimentos – foram eles reais, ou não? – mas sim o que eles despertaram. Não sabemos exatamente quem são – ou como são – as Hempstock, o que importa é que elas se tornaram o porto seguro daquele menino de sete anos – hoje um homem. Não sabemos o nome do homem, de quem é o velório que o leva a aquele lugar, nem mesmo como foi a sua vida, porque o importante é apenas a história que veremos ser despertada.
E esse é o verbo principal aqui: despertar. O que o protagonista viveu esteve adormecido nele durante todos esses anos, mas sempre esteve ali. Sempre fez parte e o ajudou a construir a pessoa que ele é – seja lá quem for. Não conhecemos o adulto, mas, ainda assim, conhecemos o menino profundamente, o que só ocorre porque Gaiman consegue fazer com que sintamos nós mesmos as dúvidas e os temores dos personagens.
E por falar em dúvidas, eu devo confessar que passei a leitura toda duvidando. Quem me conhece, sabe: eu sou mais razão que emoção. É por isso que quando leio algo que aborda o fantástico, eu preciso saber se aquilo é mesmo parte um mundo fantástico – e, portanto, é a realidade daquele mundo – ou se é uma realidade como a que conhecemos, porém distorcida por alguma razão – delírios ou, nesse caso, as fantasias de uma criança vendo o mundo real a seu modo. Ok, eu sei que isso é um tanto limitado de minha parte, mas não pude evitar sentir uma pulga (estranhamente pertinente, não?) atrás da orelha: “Isso está mesmo acontecendo com ele? A mente da criança processou dessa maneira por não conseguir entender algo? Tudo isso é uma complexa metáfora?” Esses questionamentos poderiam ter se tornado ressalvas, mas a narrativa de Gaiman é tão contagiante que eu só queria ler o que ele tinha para me contar, não importando o que aquilo significaria mais adiante. Ao terminar, minha conclusão foi que talvez não seja preciso entender. Só seja preciso aproveitar o momento e se deixar levar. Como disse Lettie Hempstock:
“Não é nada especial, saber como as coisas funcionam. E você precisa realmente deixar tudo para trás se quiser brincar” (pag. 166)
São coisas como essas que fazem o leitor refletir, se não sobre a sua infância, sobre a visão que tem da vida. “O Oceano no Fim do Caminho” é um livro inusitado e único, para ser lido sentindo, mais do que pensando, mas estando disposto a refletir e correr o risco de descobrir ou, pelo menos, de se indagar o quanto da nossa infância está adormecido, apenas esperando que nos deparemos com algo no fim do caminho e então lembremos que...
Título: O Oceano no fim do Caminho (exemplar cedido pela Editora Intrínseca)
Autor: Neil Gaiman
Nº de páginas: 208
Editora: Intrínseca