quinta-feira, 9 de julho de 2015

RESENHA: Senhor das Moscas

“Não seria possível entrar de peito aberto no forte dos outros, dizer – ‘Parei de brincar’, dar uma risada ligeira e ir dormir junto com eles? Não poderia fazer de conta que eram todos ainda meninos, colegas de escola, crianças obedientes usando uniformes com barretes? À luz do dia ele talvez respondesse que sim; mas a escuridão da noite e os horrores da morte diziam que não. Escondido nas sombras, ele sabia que estava banido.” (GOLDING, p. 206, 2014)

Tenho curiosidade de ler “Senhor das Moscas” há anos. O livro, clássico absoluto da literatura mundial, é citado com frequência em filmes e séries e (ao que me parece) é leitura obrigatória nas escolas americanas, além de sua premissa (um grupo de pessoas em uma ilha deserta) ter servido de inspiração para milhares de histórias. Recentemente, vi Stephen King dizer que esse é o seu livro favorito de todos os tempos. Preciso dar mais alguma razão para o meu interesse?

Durante a Segunda Guerra Mundial, um avião cai em uma ilha deserta e do acidente sobrevivem apenas um grupo de meninos ingleses. No começo tudo é motivo para diversão. Afinal, o lugar é lindo e não há supervisão adulta. Mas aos poucos a luta pela sobrevivência adquire contornos de luta pelo poder e instintos primitivos vem à tona, fazendo da civilidade uma lembrança distante.

Há quem defenda que o início de uma história deve ser sempre cortado da versão definitiva do livro. Golding certamente faz isso, iniciando com os meninos encontrando uns aos outros e se familiarizando com a ilha. Não vemos o acidente ou os momentos que se sucederam a ele, não sabemos como a vida era antes ou as circunstâncias do transporte. Como esses meninos se comportam nessa situação é a trama. O que vem antes ou depois na história, não importa.

Com uma narrativa em terceira pessoa que se reveza acompanhando os personagens principais, vemos que a ilha pode ser um paraíso, mas só será mediante o comportamento de quem a habita. As descrições detalhadas dos cenários fazem da ilha uma espécie de personagem onipresente que interage com os meninos, assustando-os, dando alimento e propondo desafios de sobrevivência.

O que a princípio é uma situação idílica (afinal, não há compromissos, regras ou punições) vira um pesadelo com o duelo de forças que se estabelece entre Ralph e Jack. Dois opostos. Não há dúvida de que ambos querem sobreviver, mas suas visões são bem diferentes do que os levará a isso. Enquanto Ralph é responsável e procura criar um plano a longo prazo para serem resgatados, Jack é imediatista, quer a satisfação eminente e a diversão. Ralph quer construir dormitórios e ter sempre uma fogueira acesa para que possam ser vistos pelos navios que passam, Jack só pensa na carne e na caça aos porcos. Ralph aceita a autoridade que lhe é concedida e tenta usar dela para colocar ordem e pensar no bem do grupo, sendo a favor da união (afinal, eles só sobreviverão unidos). Jack só quer um grupo que sirva aos seus propósitos e impõe autoridade através do medo (e o fato de, eventualmente, passar a chamar esse grupo de tribo e pintar o rosto – em uma espécie de máscara atrás da qual pode se esconder - revela o quão selvagens estão se tornando).

Outros personagens importantes são Porquinho (um menino gordinho que muitas vezes vira motivo de piada, mas sempre tem boas ideias, sendo o apoio de Ralph) os gêmeos Eric e Sam (que não são fortes o suficiente para se manterem firmes às suas convicções) e Simon (que parece irrelevante no início, mas depois adquire um papel único na trama).

Existem inúmeros ângulos pelos quais a história de “Senhor das Moscas” pode ser analisada. Você pode simplesmente ler e reconhecer as características desses meninos e aceitá-los como os personagens fictícios que são, ou pode encarar tudo como uma alegoria política, filosófica ou social. Você pode ver em Ralph um menino racional, prático e sociável ou pode ve-lo como uma representação da democracia. Pode ver em Jack um menino imediatista e de temperamento violento ou ve-lo como a representação do totalitarismo. Da mesma forma, Porquinho pode ser um menino tímido e inteligente, ou a representação da ciência (aquele que tem as ferramentas técnicas para solucionar os problemas – como o som que sai da concha ou o fogo que vem dos óculos) e Simon pode ser um menino que sofre de delírios ou uma representação da religião.

Outro elemento da história que vale ser mencionado é o bicho (nunca visto de fato) que, a meu ver, nada mais é do que o medo que os meninos sentem diante do desconhecido (e, eventualmente, até de si mesmos). Para mim, o bicho ainda faz uma referência aos mitos religiosos e como a vulnerabilidade diante do que não se pode explicar racionalmente dá poder a quem sabe se aproveitar dessa situação (como Jack, que usa do medo do bicho como maneira de ter força diante do grupo, afinal, ele é o caçador que pode fazer oferendas. Dessa forma, a força do bicho passa a ser a sua força). As interpretações, e elementos a serem interpretados, não param por aqui.

Não é à toa que o livro é tema de trabalhos acadêmicos, artigos e leitura tradicional nas escolas americanas (e resenhas extra-large). As discussões que rende são infinitas. Fazendo um paralelo com um livro que é leitura obrigatória por aqui, é como a “traição” de Capitu que nunca receberá um ponto final e definitivo.

Existem tantos aspectos marcantes que acredito que cada leitor salientará um. Para mim, é a velha questão: “O homem nasce bom ou nasce mau?”. A história de Golding se inclina para a segunda opção (que é o que sempre acreditei). Esses meninos, em uma idade em que suas personalidades não estão totalmente formadas e ainda precisam de orientação para distinguir o certo do errado, são largados por conta própria e cedem aos seus impulsos mais primitivos sem as regras segmentadas da sociedade. Essas crianças (que deveriam ser inocentes e puras) se comportam de maneira não diferente de adultos inescrupulosos, de políticos e de criminosos. Ninguém está mandando e nada está exigindo que ajam assim. Elas podem fazer o que quiserem e é isso que escolhem fazer. Podendo deixar o bem vir à tona, é o mal que prevalece, mesmo que elas ainda não estejam contaminadas com a maldade do mundo. É isso que dá o caráter atemporal a “Senhor das Moscas”: não se trata da situação que os meninos vivem (o fato de se passar na época da Segunda Guerra Mundial pouco importa), mas sim do comportamento que adotam (não é a educação recebida e sim a índole de cada um) e Golding não é o único autor a mostrar que em essência o homem sempre foi e sempre será o mesmo. “Dança da Morte” (de Stephen King) e “Um Cântico para Leibowitz" (de Walter M. Miller Jr.) são outros livros que nos obrigam a concluir o mesmo.

Além disso, em “Senhor das Moscas” reside o cerne de várias histórias que vemos por aí: pessoas em uma ilha deserta, uma nova sociedade que surge a partir do aniquilamento da anterior na qual as pessoas construirão as regras do zero, a perda da inocência infantil. Golding conseguiu fazer tudo isso ao mesmo tempo, há 60 anos e em apenas 200 páginas.

“Senhor das Moscas” é um livro que cativa mais pelas reflexões que proporciona do que pela leitura em si (até porque as descrições de Golding pesam na narrativa em alguns momentos). Quando terminei, fiquei analisando o comportamento daqueles meninos, imaginando o que aconteceria com eles após a última página, pensando em como lidariam com tudo o que viveram. A verdade é que para as coisas que viram e fizeram, não há volta. Aqueles eventos irão acompanhá-los para sempre. Os ferimentos podem não sangrar mais, mas deixarão cicatrizes. Pode haver arrependimento e eles podem nunca se comportar daquela maneira feroz de novo, mas um lado sombrio de suas personalidades já veio à tona.

Em um desfecho simples mas perfeito, Golding conseguiu gerar alívio, pena e ao mesmo tempo nos fazer querer dizer “bem feito”, impactando no leitor tanto pelo que poderia ter acontecido caso a história continuasse, quanto por tudo que nunca voltará a ser como antes.

“Senhor das Moscas” (cujo título é uma referência a Belzebu) é o livro de estreia de William Golding, autor premiado com o Nobel de Literatura. Uma história universal, atemporal, que pode ser lida por todas as idades e mais de uma vez. Conquistou seu lugar na minha lista de releituras.

Título: Senhor das Moscas (exemplar cedido pela editora)
Autor: William Golding
N° de páginas: 223
Editora: Alfaguara

17 comentários:

Anônimo disse...

Mari parabéns pelo texto, mas e agora me empresta o livro? hahahaha
Nossa deu muita vontade de ler, já até marquei o nome pra fazer uma compra futura. Quero livros assim, bons e curtos; depois de varias leituras super longas.

http://maisumaleitura.blogspot.com.br/

Unknown disse...

Tenho muita vontade de ler esse livro, desde que vi o filme, na época de escola ainda. Achei a história fascinante e digna de uma profunda reflexão. Sua resenha foi mais um impulso para que eu leia!
Zona de Conspiração | Facebook da Zona

Diane disse...

Olá ...
Sua empolgação com o livro resenhado me fez desejar lei imediatamente essa obra , que me parece ser de uma qualidade imensa .
Já o coloquei na minha lista de desejados ;)

http://coisasdediane.blogspot.com.br/

Paola Severo disse...

Oi Mari, que resenha excelente, parabéns! Atiçou ainda mais a vontade que sempre tive de ler este livro, que está na lista dos 100 melhores de todos os tempos que tenho colada na minha estante!

Beeijos, Paola
uma-leitora.blogspot.com.br

Gabriela CZ disse...

Tá aí outro livro que quero muito ler. Também o vejo ser constantemente citado em filmes e séries e também tenho essa sensação de ser uma leitura obrigatória nas escolas americanas, Mari. Por tudo que já ouvi sempre tive a sensação de que se trata de uma história que provoca reflexões sobre índole e até ideologias, e seus comentários só reforçaram isso. Reforçando também minha curiosidade. Preciso ler. Ótima resenha.

Abraços!
http://constantesevariaveis.blogspot.com.br

Leandro de Lira disse...

Oi, Mari!
Esse livro é fantástico! Fiz a leitura dele ano passado e amei. É um livro que realmente te faz refletir sobre muitas questões que pairam no mundo atualmente. Eu sempre acreditei que o homem já nasce mau mesmo; assim como você, também tinha essa dúvida. E ao começar estudar Psicologia, muitas coisas começaram a ter um novo significado e uma nova explicação para mim.
Não sabia que este era o livro favorito do King. Isso é ótimo. Adoro mais o King agora por isso e espero poder reler este livro incrível muito em breve.
Abraço!

"Palavras ao Vento..."
www.leandro-de-lira.blogspot.com

Ana Clara Magalhães disse...

Oi Mari!

Nunca tinha ouvido falar desse livro, nem do autor. Fiquei curiosa pelo título. Deve ter sido interessantíssimo acompanhar o crescimento das crianças presas na ilha, bem como suas escolhas. Bem legal saber que esse é um dos livros preferidos do King. Só por isso ele deve ser muito bom.

Beijo!
http://www.roendolivros.com/

Inês Gabriela A. disse...

Olá,
Nossa, o King falou que é um dos livros favoritos dele *O*. Eu tenho uma lista de obras recomendadas por ele desde que li (e me apaixonei) por Sobre a Escrita, ainda não li nenhum, mas esse livro tem um proposta bacana e sua resenha animada despertou minha curiosidade.
Beijos.
Memórias de Leitura - memorias-de-leitura.blogspot.com

Unknown disse...

Mari, que resenha incrível! Acabei de conhecer e fiquei super interessado no livro.
A mensagem que esse livro passa deve ficar por anos na cabeça!! Quero muito ler!
Beijos
mundoemcartas.blogspot.com.br

Blog a venda 5 disse...

Uma vez tentei assistir o filme e não consegui chegar nem na metade,
com certeza o livro é bem melhor né, geralmente são
vou tentar ler e espero gostar

Mil beijocas
⋙ ♥ Blog Livros com café

Daniel Igor disse...

Wow, que resenha complexa e bem escrita. Super gostei.
Nunca tinha ouvido falar do livro, mas parece ser um clássico super moderno, com certeza vou ler, já que também citaste que é para todas as idades.
Gostei, parabéns ^^

bookdan.blogspot.com

Bianca Sampaio disse...

Oi Mari!
Não conhecia o livro, mas fiquei muito interessada. A premissa me deixou bem curiosa, além da sua resenha. Aliás, parabéns!

Beijos,
Epílogos e Finais

Carla disse...

Oi Mari!
Eu já tinha ouvido falar desse livro, mas nunca procurei detalhes... Gostei dos seus comentários e vou anotar na listinha para poder ler \o/
Bjks!
http://www.historias-semfim.com/

Anônimo disse...

Oi, Mari!

Estou me perguntando porquê ainda não li este livro. Sempre o tive na lista mental de livros que quero ler, mas até agora nada. Pude confirmar que estou perdendo uma excelente leitura! Adoro histórias atemporais, reflexivas e com alegorias. Suas interpretações e comentários foram o que mais me deixaram inconformada por ainda não ter lido "Senhor das Moscas", haha... Pois percebo que iria gostar bastante dessa história (impactante).

Beijocas.
http://artesaliteraria.blogspot.com.br

RUDYNALVA disse...

Mari!
Não foi do nada que o autor recebeu o Nobel de literatura.
Imagina escrever sobre a índole humana há 60 anos atrás? Mesmo se utilizando de crianças que tendem a levar tudo para o lado da aventura e da curiosidade, soube exatamente avaliar a personalidade humana e proporcionou um exercício de convivência em uma ilha isolada, para que florescesse a essência de cada um.
Perfeito!
“Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo...”(Mario Quintana)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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Tamara Costa disse...

Há alguns meses atrás eu tentei ler o Senhor das moscas, por razões de impaciência eu larguei o livro. Acho que voltei a vontade de lê-lo com sua resenha. Eu não vi tantos pormenores na trama quando tentei lê-lo da primeira vez e achei um pouco chata a narrativa mas se a história tem tanta simbologia e gerou tanta explanação, eu fiquei no mínimo curiosa...vou procurar e tentar ler de novo.

Ju M disse...

Uau, que resenha instigante. Adoro ler clássicos, estou lendo os da literatura brasileira, esse ano elegi José de Alencar para ler. O Senhor das moscas parece ser realmente muito reflexivo, Já ouvi falar muito, é daqueles livros que devem ser lidos.

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