Há 30 anos Stevens serve como mordomo na mansão Darlington Hall. Seus primeiros anos de serviço foram dedicados a Lord Darlington e agora ele serve a Mr. Farraday, um rico norte-americano. É por sugestão de seu atual patrão que, no verão de 1956, ele tira uma semana de férias, partindo em uma viagem de carro rumo ao encontro de Miss Kenton, uma antiga colega de trabalho que lhe escreveu há pouco tempo falando sobre a insatisfação que sente em relação a seu casamento.
“Os Vestígios do Dia” é um trabalho primoroso de narração. Stevens, seu narrador-protagonista, olha o tempo todo para o passado, focando em acontecimentos de sua vida como mordomo e das coisas que presenciou a serviço de Lord Darlington. A vida inteira, devido a sua profissão, Stevens se acostumou a estar pronto para servir e a ficar invisível quando não se fazia necessário. Por isso é fácil entender porque o personagem fala pouco sobre si – sobre seus desejos e sentimentos – mas é impossível dizer que a narrativa se trata de outra coisa que não ele. Enquanto discorre sobre a casa, sobre o patrão a quem tanto admirava, sobre as exigências de seu cargo (todas coisas que sempre estiveram em primeiro plano para ele), o personagem, sem perceber, se revela e se coloca em primeiro plano para o leitor mesmo que fosse um mero coadjuvante em quase todos os eventos que relata.
Apesar de o tempo da narrativa se dar durante os dias da viagem do protagonista, os acontecimentos desses dias são quase irrelevantes, já que o relato de Stevens foca mais em suas lembranças do que no que lhe acontece agora. Na verdade, “Os Vestígios do Dia” é um livro escasso em acontecimentos, afinal Stevens nunca esteve no centro dos episódios que relata, de forma que não vemos o desenrolar daqueles eventos (e suas consequências de fato pouco importam para o leitor). Tudo que vemos é o olhar de um homem que, na verdade, evitava olhar, pois sabia que estava ali apenas para fazer o seu trabalho.
“Olhando em retrospecto a minha carreira até aqui, minha maior satisfação vem do que conquistei naqueles anos, e, hoje, tenho nada mais que orgulho e gratidão por ter desfrutado de tal privilégio.” (ISHIGURO, p. 143, 2016)
Stevens é um personagem maravilhoso. Sua existência está totalmente entrelaçada a sua profissão. Ele não é um homem e sim o mordomo de Darlington Hall, tanto que agora, na única vez em que se afastou dos seus deveres (algo que só fez pelo estímulo do patrão e na expectativa de reencontrar uma antiga colega de trabalho para trazê-la de volta para a casa) ele parece não saber como ser simplesmente ele mesmo e seus pensamentos se voltam sempre à casa e a Lord Darlington. Além disso, tudo em sua narrativa mostra o seu comportamento como mordomo, já que cada palavra revela o quão ponderado, comedido e discreto ele é. Isso se aplica até mesmo aos seus sentimentos em relação a Miss Kenton. É transparente para o leitor que Stevens tem sentimentos românticos para com ela, mas em nenhum momento o personagem fala sobre isso ou chega a dar algum indicativo sobre se ele mesmo tem consciência disso. Isso reforça o fato de que Stevens não teve uma vida e sim uma carreira (e as duas coisas se confundem completamente para ele).
Sou da opinião que conjugar verbos na primeira pessoa do singular não é o suficiente para um narrador em primeira pessoa (não um eficiente, pelo menos). É preciso que o autor saiba fazer seu leitor ver o mundo pelos olhos do personagem e isso é muito mais importante do que fazer o personagem falar sobre si. É aquela velha história “mostre, não conte”. Ishiguro faz isso maravilhosamente bem.
Outro mérito da narrativa do autor é que, mesmo criando uma trama em que as coisas se revelam nas entrelinhas e os acontecimentos são escassos, a leitura é surpreendentemente fluida.
“Os Vestígios do Dia” tem um tom melancólico e nos lembra que somos a soma das nossas escolhas, do que fazemos e do que deixamos de fazer. Em 1989, o livro foi vencedor do Booker Prize e em 1993 inspirou o famoso filme homônimo estrelado por Anthony Hopkins e Emma Thompson.
Esta edição faz parte do novo projeto gráfico que a editora Companhia das Letras tem dado às obras de Kazuo Ishiguro e conta ainda com o breve conto “Depois do Anoitecer” sobre um homem que retorna à aldeia onde viveu quando jovem e onde era uma figura de destaque, mas agora é recebido como nada mais que um velho. Confesso que o conto, porém, não me cativou muito.
Autor: Kazuo Ishiguro
N° de páginas: 285
Editora: Companhia das Letras
Exemplar cedido pela editora
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