Com “Tempo é Dinheiro” Lionel Shriver entrou definitivamente para o rol de autores em que confio dispensando sinopses.
Shepard sempre economizou para “a outra vida”. Sempre sonhou em, um dia, deixar tudo para trás e ir viver em um lugar idílico. Por isso, suas viagens de férias com a família nunca foram chamadas de férias e sim de “pesquisa de campo”, afinal, era preciso estudar os territórios para descobrir em qual recomeçar a vida. Até que um dia Shepard toma a coragem necessária. Compra as passagens (para ele, a esposa Glynis e o filho adolescente), coloca a mala em cima da cama e começa a pensar no que irá levar. Quando a esposa chegar em casa naquela noite, ele irá confrontá-la com a notícia, mas eis que Glynis também chega com notícias: ela está com câncer terminal.
Shriver é o tipo de autora que não cria tramas e sim personagens. É por isso que nas suas mãos qualquer premissa funciona e a de “Tempo é Dinheiro” é um prato cheio para deixar a humanidade de cada personagem transbordar.
É por isso também que mesmo o livro girando em torno da terrível doença e da deterioração de Glynis, ele não seja sobre a doença ou sobre sua possível cura e sim sobre o que ela faz com o relacionamento do casal, como muda a dinâmica entre marido e mulher, os aproximando e os afastando ao mesmo tempo. É sobre como as pessoas da vida de Glynis (seus filhos, amigos, parentes e vizinhos) passam a vê-la, como lidam eles mesmos com a doença. Por isso, “Tempo é Dinheiro” não é um livro sobre uma mulher com câncer, mesmo sendo protagonizado por uma. É um livro sobre relacionamentos.
Além de Glynis, Shriver também coloca em cena os melhores amigos do casal lidando com uma doença raríssima que acomete sua filha adolescente e ainda com as consequências de uma cirurgia. Como se não bastasse, completa o time o pai de Shepard que, já idoso, passa a necessitar de cuidados específicos. E aí você pode pensar: “Mas isso é forçar muita doença junta” e eu estaria inclinada a concordar caso Shriver não fosse hábil a ponto de deixar que as angústias dos personagens fossem maiores do que os acontecimentos que os cercam.
“Para a sua vergonha, estar na cama sozinho foi um alívio. A simplicidade, a vastidão sem exigência dos lençóis vazios. Não se apercebera da tensão de um outro corpo ao lado do seu, apodrecendo um pouco mais a cada minuto, de dentro para fora. Da energia que a impossibilidade de protegê-la drenava dele. Ninguém imaginaria que uma coisa que não se podia fazer e não se vinha fazendo pudesse tirar alguma energia, mas tirava.” (SHRIVER, 2012, p. 148)
Também não vem ao caso gostarmos ou desgostarmos desses personagens. Eles são humanos demais para que nos sintamos da mesma forma o livro todo. Eles erram uns com os outros, se arrependem, são injustiçados e assim seguem. Ao final, é impossível não se sentir comovido com o que acontece a todos.
Outro toque genial de Shriver é iniciar alguns capítulos com o saldo bancário de Shepard, de forma que podemos ver o quanto a doença de Glynis o está sugando em todos os sentidos. Vemos o tempo que passou, o dinheiro que se foi, o quanto “a outra vida” era uma ilusão e o quão triste é que, na verdade, ele tenha deixado de fazer tantas coisas que queria fazer, que tenha economizado tanto em cada oportunidade, apenas para que o dinheiro fosse aproveitado dessa maneira. Sem hipocrisia ou insensibilidade, Shriver aborda a importância do dinheiro em uma situação como essa e o fato de que Shepard e o filho precisarão de meios para continuar vivendo quando Glynis se for.
A autora também nos leva a pensar sobre as apostas que fazemos todos os dias, contando que o futuro nos reserva isso ou aquilo quando, na verdade (e o clichê é inevitável), tudo é incerto. É assim que o “tempo” do título também se justifica. Não temos todo o tempo do mundo. Temos algum tempo e algumas chances de fazer o que queremos. Muito ficará para trás. Muito ficará apenas no plano dos sonhos. É preciso escolher e agir.
Fiz com “Tempo é Dinheiro” algo que nunca faço: interrompi a leitura na metade para aproveitar um feriadão e mergulhar em um livro que há meses ansiava em ler. A razão pela qual nunca faço isso é que perco a conexão com a história e com os personagens, mas nesse caso, Shepard, Glynis e aqueles que os cercam são tão verdadeiros que senti que podia me afastar e quando retomei a história não senti que havia perdido nada. Nem parecia que eu tinha interrompido a leitura.
Longe de ser um livro ágil, “Tempo é Dinheiro” obriga o leitor a passar com sua protagonista por todo o processo do tratamento. Não é bonito, mas não queremos nos afastar. Uma trama trágica, comovente e, sobretudo, humana na qual Lionel Shriver aborda o que fazemos com o dinheiro, o que fazemos do nosso tempo, como construímos (ou destruímos) as nossas relações. Como vivemos as nossas vidas enquanto a morte, inevitavelmente, não chega.
Autora: Lionel Shriver
N° de páginas: 462
Editora: Intrínseca
Exemplar cedido pela editora
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11 comentários:
Oi, Mari.
Apesar de uma pesarosa história, é também uma realística história.
Gosto quando podemos refletir, após ler um livro. Parece ser esse o caso.
CARAMBA!!!
É tão bom quando criamos essa conexão com o autor e nos precisar de sinopse por ter a certeza que será incrível.
Não conhecia esse autor e estou boquiaberta com essa resenha; a mensagem que fica é o que importa é vivermos o momento presente.
Fiquei curiosa com esse drama.
Beijos
Parece um choque de realidade, Mari. Nem questionaria isso de tantas pessoas próximas ficarem doentes pois vejo isso direto. E a trama parece muito verdadeira. Ótima resenha.
Beijos!
Mari!
Confesso que pelo título, achei que o livro traria uma abordagem totalmente diferente e que bom que me enganei, porque esse tipo de leitura, me agrada muito mais do que o que pensei ser...
Claro que doença nunca é boa, porém gosto de livros com essa aboradgem mais voltada aos relacionamento e o impacto psicológico que eles causam em situação como a perda de alguém querido.
Sem contar que, após ter o diagnóstico de que um dia serei dependente da cadeira de rodas, me faz aproveitar o tempo e o dinheiro com 'coisas' que me trazem prazer de verdade, afinal, será que estarei aqui amanhã? Não sou perdulária, até busco ter uma pequena reserva para imprevistos, mas procuro usufruir da melhor forma para que me traga prazer e felicidade.
Adorei e quero ler o livro.
Que o domingo seja abençoado!
“Nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir. “ (Clarice Lispector)
cheirinhos
Rudy
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Oi Mari, tudo bem?
Quando terminei de ler tua resenha pensei: "que livro penoso, intenso, pesado e verdadeiro".
Achei a abordagem bem direta, quase um tapa na cara, pelo que tu escreveu... uma dose da realidade de muitas pessoas, o quanto isso impacta na vida de cada um.
Gostei muito dessa indicação.
Beijos
http://espiraldelivros.blogspot.com/
Oi, Mari!!
Essa é a primeira vez que leio alguma resenha de Lionel Shriver, achei uma história bem emocionante, dolorosa e impactante para todos os personagens da família, amigos e conhecidos quando descobrem uma doença em uma pessoa que nos é querida. Sem dúvida é uma leitura que é bem interessante.
Bjos
Oi Mari!
Adorei a resenha, ainda não conhecia o trabalho da Lionel Shriver, mas fiquei muito interessada pela autora, principalmente pelo que você falou de ela não criar tramas e sim personagens, e vou começar por esse livro, que por tudo que você diz na resenha parece ser muito intenso e envolvente, apesar de ser um tanto "pesado".
Apesar de ainda não ter lido esse livro eu sou completamente apaixonada pelo autor acabei comprando um livro dele por acaso e fiquei completamente embriagada pela escrita maravilhosa que ele possui e esse livro tem cara de ser bem intenso
Oi, Mari
Quem vê a capa do livro, não vê coração. Quando olha o nome do livro podemos pensar qualquer assunto menos esse.
Ainda não li nada da autora, mas tenho certeza que esse livro vou adorar e identificar com pouco com a história, minha mãe e avó tiveram câncer de mama, então nessa parte do enredo sei um pouco como será.
Um livro intenso, porém maravilhoso.
Beijos.
Oi Mari,
Juro que quando olhei para o livro não dava nada pra ele, tem uma cara de "auto ajuda", rs, e talvez até contenha um pouco disso mostrando uma história de ficção, mas que sabemos que muita gente vive por aí, se mantendo "refém" do dinheiro, uma pena... A história parece ser intensa e triste, com isso imagino que não tem como os personagens não nos prenderem!
Beijos
Oi Mari,
não conhecia o livro, mas sempre leio bons elogios sobre a autora.
Ai confesso que não curti muito o livro pelo o que você falou, parece ser bem triste e cheio de problemas, pesado, embora também bastante reflexivo.
Vou tentar ler outro da autora primeiro.
bjs
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